UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

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Você está em Leitura por rotas » A Praia de Ubatuba e o Cais em T [R10]

Quase ao pé do cais em T, planta-se, sentada à esquerda, uma velha de aparência rude; o chapéu de feltro desabado cobre parte do seu rosto; tendo dobrado as pernas, abriga-as com a saia ruça - roxa ou negra - e tão encardida quanto a blusa vermelha. Com gestos mecânicos, substitui seguidamente as iscas do anzol; não consegue fisgar um único peixe. Ainda desse lado, mas na asa do T, perfila-se um segundo pescador, munido de luvas e agasalho de lã. No extremo direito do cais, sob o poste cuja lâmpada o vento com certeza arrancou, o pobre homem mal abrigado num plástico amarelo - com tão pouca sorte quanto a velha - sustém resignadamente a sua cana. Entre ele e o homem de luvas, mais perto dele que do outro, vemos o quarto figurante do quadro, de costas para nós, os pés pendendo sobre as águas: tira e repõe a intervalos o chapéu, um chapéu incomum, azul e cônico.

Rege esses pescadores e os demais elementos da cena - as silhuetas delgadas dos postes a um lado e outro do T, as pedras de atracação fincadas junto dos postes -, rege tudo isto um ritmo preciso e claro, uma simetria que, sabemos, o acaso nunca oferece e que os leves desequilíbrios existentes fazem ainda mais tensa.

Eu e , aturdidos ante a coerência do que vemos, esperamos definir-se o evento já em elaboração, peça a ser executada e anunciada na disposição caprichosa desses elementos, sua introdução ou abertura. Aqui, através dos fios e dos nós sempre emaranhados das coisas, aqui, fragmentos dispersos associam-se e entre si estabelecem um nexo que evoca a seu modo as narrativas. As narrativas e os eclipses. Um barco a motor passa à distância com uma figura de pé na proa, faz um desvio junto aos dois pesqueiros ancorados e avança, o compasso abafado do motor espraiando-se no silêncio da tarde e parecendo separar com um traço a cena do cais, estática, das que devem seguir-se.

Dois novos personagens se aproximam do cais, um de roupa escura, com botas de borracha e gordo; outro de calção azul e camiseta branca, abrigado sob um velho guarda-chuva. Vêm devagar, conversando, as varas de pesca na mão. Hesitam um pouco sobre a plataforma, olhando em torno, sem que nenhum dos outros se volte para eles.

O cenário em que ingressam já tem as suas leis: há, entre objetos e homens, um equilíbrio tão preciso e claro, que a indecisão de ambos, creio, dissimula uma recusa, resistem a ocupar, no cais, os lugares para os quais um ritmo subjugante impele-os. Afinal, o de botas apanha dois caixotes, avança resoluto e os dispõe lado a lado, mais ou menos no centro do cenário, entre o tipo de luvas e o de chapéu cônico. A simetria, evidente, também aqui não é perfeita. Há, entre o burguês à esquerda e o primeiro caixote (onde se senta o homem de guarda-chuva), intervalo um pouco maior que o observável entre o caixote da direita (senta-se nele o de botas) e o obscuro figurante que, mais uma vez, tira e repõe o estranho chapéu azul, sem voltar-se para os lados. Move a cabeça e olha-me, as narinas acesas: sua mão forte aperta-me a coxa. O duplo baque dos caixotes, soturno, acaba de demarcar, assim como a passagem, ao largo, do barco a motor, mais uma unidade da composição que, à semelhança de um texto, ante nós se organiza e da qual somos parte (pois não seria incompleta e, em certo sentido, perdida, inútil, se aqui não houvesse alguma consciência que, contemplando-a, aprendesse o sentido que contém - ou, ao menos, simula conter - e a seu modo o traduzisse?) A mancha amarela do plástico afla ante o mar fosco.

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