UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins
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Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela
leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado.
As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas
em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos
a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.
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Você está em Leitura por rotas » Referências Históricas [T9]
Cecília, ante a Matriz de Santo Antônio, a mão direita estendida (encontro casual e rápido), despede-se de mim. Céu cambiante, entre azul-pálido e roxo desmaiado. Restos da claridade diurna envolvem numa luz dourada a igreja, os edifícios profanos, seus vidros, o asfalto da Praça, os letreiros, as calçadas, a indistinta multidão e os nossos vultos. No esmalte dos veículos refletem-se as lâmpadas, acesas prematuramente. Cerca-nos o tumulto urbano desta hora. Rolam as portas de ferro nas lojas, fecham-se com lentidão os cofres-fortes, os escritórios vão silenciando. Os elevadores chegam lotados aos andares térreos. Acelera-se a marcha das pessoas na rua e os veículos arrastam-se. Rodeiam-nos, tensos, milhares de corpos, cada um no seu rumo. Todos, para todos, fechados em sua incógnita. Impossível conhecê-los. Impossível, ante realidade tão mutável, diversa e vasta, todo relacionamento, salvo reduzindo-a a uma noção abstrata.
Portanto: deformadora e unificadora.
Conhecer cada um que avança a nosso lado? Sentir cada um? Amar cada um? Retenho, entre as minhas, a mão de Cecília. Quanto tempo? Três segundos, cinco, o tempo de entrevermos o dourado dos entalhes na capela-mor do templo, de descermos um degrau, pouco tempo. Seus dedos estremecem e eu vejo-a, vejo-a duplicada. Vemos assim a própria imagem em certos espelhos ordinários: dois rostos superpostos, porém com um desvio mínimo entre esses reflexos idênticos. No vão exíguo do desvio, surpreendo (um clarão) a natureza recôndita de Cecília, sua identidade verdadeira. Um clarão. Deslumbrado e ao mesmo tempo com o dom irrestrito de ver, como alguém que sob um raio, em plena treva, desvendasse os mil rostos de uma multidão e também a sua história, vejo a espessura da carne de Cecília, povoada de seres tão reais quanto nós. Na substância da sua carne mortal, conduz Cecília o íntegro e absoluto ser de cada figura que atravessa a Praça, e não só dos homens e mulheres que agora povoam a Praça e os arredores, mas também dos que ontem a povoaram, dos que em maio ou junho a povoaram, dos que no ano findo a povoaram, dos que hão de a povoar ainda amanhã, destes e dos que em outras partes existem ou existiram, sim, nenhum está ausente em definitivo do corpo de Cecília. Cecília, deste modo, é ela e outros. Amando-a, o meu amor abrange numa espécie de múltipla e concreta individualidade o que em princípio é inapreensível e abstrato. Sua mão leve desliza entre as minhas. Frágil no corpo e no nome, Cecília dá-me as costas e deixa-me só.
Oito anos, hoje, do suicídio de Vargas.
Não os parentes, mas os que povoaram a terra onde se nasce. Gostaria de encontrar o velho povo de Olinda. Os pioneiros que saíram de lá e povoaram toda a planície costeira por aí.
Mas hoje só se pensa em greve. Greve e roubo. Tudo tão inseguro!
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