UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema P - O Relógio de Julius Heckethorn [P4]

Recebe Julius Heckethorn, junto à família paterna, uma educação afim à sua índole e pouco clarividente em relação aos anos que, no âmago de outros, são engendrados. Lê muito, principalmente obras vetustas e pouco conhecidas. Num dos livros impressos pelos tipógrafos de Basiléia e recenseados por Charles W. Heckethorn, encontra indicações, incompletas e vagas, é certo, sobre um relógio doméstico, provido de três sistemas de som e inspirado, em parte, no relógio de planisfério construído em 1344 por Santiago de Dondis, médico-astrônomo de Pádua: o tríplice aparato sonoro, uno e sincrônico em sua origem, deveria seccionar-se, ficando tão exposto ao acaso que bem poderia jamais voltar a ser ouvido na íntegra. Não consta, informa o incunábulo, que tenha ao menos sido iniciado e escasseiam notícias sobre o projeto, aliás inviável para alguns entendidos. Julius é ainda uma criança, mas o apaixona este sonho caprichoso e as notas tomadas na ocasião o acompanham durante anos. Com o armistício, emudecem os carrilhões do pai. Este, antes de perceber que a sua falência é irremediável, descobre que a esposa, por quem deixa e esquece o país onde nasce, mantém ligações íntimas com um agitador. Enganado pela mulher, pela vida, pela História, pelas resoluções da juventude e pelas fantasias de que em outros tempos se nutre, suicida-se com um tiro na cabeça. A bala e o revólver que utiliza em seu último gesto são ingleses, numa espécie de fúnebre reconciliação com o Reino Unido. A outrora jovem Erika Haebler desaparece na fumaça, no pó e nos detritos de 1918. Enquanto progride em sua aprendizagem musical - revelando, com alguma precocidade, predileção por Mozart - e acentua o gosto pelos livros pouco divulgados, Julius abre um novo campo de interesse, a arte da relojoaria. Não lhe é difícil entrar como aprendiz numa fábrica de Southampton, onde, graças aos seus conhecimentos teóricos do ramo, logo é promovido a montador. Define-se, enquanto isto, o desejo de voltar à Alemanha e reabilitar se possível a oficina de carrilhões, que sobrevive em sua memória, não obstante Mozart e o cravo, como um Éden povoado de sons e do qual se considera banido. Aos vinte e um anos vê-se afinal em Colônia. Provê suas despesas executando ao piano músicas da moda, a hora do chá, num hotel próximo a Catedral. A herdeira de um abastado corretor de Münster, pálida e frágil, de passagem na cidade para submeter-se, aliás sem esperança, a prolongados exames numa clínica (sofre de cegueira progressiva), é atraída por esse jovem de modos refinados e fala com sotaque britânico a língua alemã. A construção do relógio que Julius Heckethorn tem em mente, facilita-a, de maneira indireta, a governanta que acompanha Heidi Lampl durante a sua estada em Colônia. Decorre o mês de maio. As noites e manhãs, cada vez mais escuras para a moça, sucedem-se, luminosas e tíbias. A governanta, um pouco inebriada pelo ar e pelo seu papel de confidente, prepara os encontros da jovem enferma com Julius, e, de regresso, exalta quanto pode, ante a família, esse artista gentil e um pouco assustado, que fala com igual entusiasmo de Mozart e de Silvestre II, papa, relojoeiro e entendedor de mecânica celeste. Em agosto Julius vai a Münster e os Lampl o aceitam. O casamento realiza-se, em janeiro de 1930, sem pompa e um tanto às pressas, a fim de que a noiva, então com vinte anos, possa ainda captar visões da cerimônia: envolve-a, rapidamente, a cegueira total. Com a ajuda do sogro, Julius Heckethorn instala-se na região em que vive os primeiros anos da infância e restaura a fábrica de carrilhões. Dedica-se então a projetar e construir o relógio que, de maneira ainda vaga, imagina. A intenção inicial de Julius é basear-se num relógio de azeite ou numa clepsidra. Os relógios correntes, que funcionam a saltos e com os quais estamos habituados, parecem-lhe corromper uma noção que os primeiros instrumentos de medir o tempo, como a ampulheta ou o relógio de sol, restauram e transmitem de um modo menos infiel: a de ser o tempo um fluxo, um fenômeno contínuo e indiviso. Muito reflete sobre isto e sobre o quase impossível equilíbrio de processos modernos e de elementos arcaicos que exige para a futura invenção. Embora não chegue, em suas conclusões, a uma espécie de mística, como a que constata, devido à influência da cabala, nos pensamentos do gramático Virgílio Marão sobre o alfabeto - nem sempre comparáveis, as suas associações, aos caprichosos símiles de Isidoro, autor das Etymologiae, onde encontramos a afirmação de que a pena, o cálamo, com o corte na ponta, representa uma unidade que chega à dualidade, constituindo portanto um símbolo do Logos, o Verbo divino, expresso igualmente em outra dualidade, a dos dois testamentos, o Antigo e o Novo, visão por certo emanada de Cassiodoro, para quem o fato de, ao escrevermos, segurarmos a pena com três dedos, prende-se à idéia da Santíssima Trindade -, pensa Julius Heckethorn que uma conquista técnica em órbita de transcendência igual à da escritura, a órbita da medição do tempo, jamais será gratuita. Impossível, trabalhando com relógios, manter-se alheio e deixar de obedecer a vozes silenciosas. Por menos que as ouçam ouvidos, nunca poderão ignorá-las mãos e imaginação. Ainda menos pode admitir que Gerberto de Aquitânia, a quem admira mais que a Mozart, inventor do relógio a saltos, homem de conhecimentos tão variados e pouco comuns a ponto de surgir como protagonista de lendas que o dão por feiticeiro, e isto apesar de haver reinado sobre a cristandade nos anos que assinalam a passagem, temerosamente esperada e vivida, entre o primeiro e o segundo milênios - ou seja, exatamente entre 999 e 1003 -, sob o nome de Silvestre II, se apresente, em época de tão profunda religiosidade, como responsável por um artefato despido de significação. E que pensar de ser Gerberto um conhecedor da ciência árabe? Sim, Julius Heckethorn, dentre outros motivos, não menospreza o fato de o beneditino Gerberto de Aquitânia, residente em Córdova num tempo em que a esplêndida filha do Guadalquivir não é apenas a cidade das mil mesquitas, das fontes de mercúrio e dos tetos com pedras preciosas, passar à posteridade como versado na Aritmética e na Cosmogonia árabes. É, portanto, fundado em precedentes vários que abandona a idéia arcaizante da água ou do azeite como princípio motor do seu relógio, e opta em definitivo por um mecanismo a saltos. O tempo, flua ou não, repudia as interrupções, os seccionamentos. Contesta-se, no entanto, a tendência do homem a imprimir-lhe um ritmo? Este ritmo surge - é conquistado - com o relógio a saltos. A saltos move-se no corpo o sangue, a saltos atuam os pulmões, move-nos a saltos, mesmo as aves de mais tranqüilo vôo a saltos se deslocam, nadam os peixes movendo, a saltos, as barbatanas, dia e noite são saltos, ir e vir, passar e ressurgir, sim e sim, não e não, e a própria consciência que temos de existir não é contínua, toma-nos e foge, vez por outra assalta-nos, a saltos. Um erro ambicionarmos, para a representação do tempo, engenhos contínuos, nunca interrompidos, sem pausas, renegando a nossa natureza, que pulsa como pulsam os pulsos - e que tudo corta, como corta o pensamento, em palavras, em sílabas, em letras. Acentua ainda sua decisão: a presença, no mecanismo do relógio a saltos, do cabelo e das molas, corações metálicos da engrenagem, peças em espiral e, a seu modo, figurações palpáveis do tempo, tão claras qual se fossem, da palavra tempo, a representação ideográfica. Não sendo Julius, no mundo da relojoaria, um nome, portador de longa tradição, e sim um amador com idéias, reconhece faltarem-lhe credenciais para sequer aspirar a construir um relógio astronômico como o da catedral de Lyon. Insensato, igualmente, elaborar planos para um relógio musical de grandes proporções, tal o da Prefeitura de Iena; o de Lunden, na Suécia; o Jacquemart, de Westminster. Onde um Carlos V, de França, para confiar-lhe uma encomenda como o famoso relógio do Palácio? Nenhum potentado ou administrador entregará a um obscuro cravista e fabricante de carrilhões na Floresta Negra um relógio de torre (Julius tem o esboço de um modelo inspirado no da catedral de Troyes) ou sequer algum relógio público, dos que luzem nas praças ou edifícios oficiais, embora ele imagine alguns ainda mais interessantes do que, por exemplo, o da estação de Waterloo, com quatro mostradores e sem mecanismo visível. Por outro lado, ele sabe: os costumes mudaram. As cidades já não precisam de relógios para os seus habitantes e o sentido como que sacral das horas (hálito do tempo?) perdeu-se para os homens. As informações relacionadas com o sentido rítmico do tempo também caíram em desuso e agora o rádio assume a função dos campanários, informando a esmo a passagem das horas, em cutiladas e não em obediência a um rito. A idéia original, então, é construir um objeto mais ou menos portátil, uma acordina de parede. Os primeiros desenhos convencem-no de que terá maiores possibilidades de cumprir o projeto se dispuser de mais espaço. Um relógio de caixa, eis a medida ideal. A linhagem a que se filia a sua criação, bem o vimos, não é a dos relógios monumentais; nem é a dos relógios graciosos. Dir-se-á ao menos que Julius Heckethorn, com o seu relógio, inscrevese de modo indiscutível entre os relojoeiros? Com maior força de justiça poderá ser incluído entre os intérpretes ou contempladores do universo. Por sinal, nos meses em que desenha o mecanismo, o livro que traz sempre consigo não é o Arte de Reloxes ou a Memória sobre o Centro de Oscilação do Pêndulo, de Jean Bernovilli de Basiléia, e sim, numa edição holandesa, o Manual de Astronomia Árabe, de Alfraganus. Sabe perfeitamente Julius Heckethorn que, em outras partes do mundo, e fabricados com instrumentos bem menos precisos, surgem relógios mais engenhosos que o seu. Não o pode equiparar, em invenção e finura, à clepsidra oferecida por Harum-al-Raschid a Carlos Magno e na qual se abrem portas cinzeladas à medida que o nível da água vai descendo; das portas, tombam hastes de prata sobre um tambor de bronze, com um ruído tão sutil e intenso que se ouve à distância; pode-se, além disto, saber quantas horas são passadas pelo número de portas já abertas, existindo ainda, para coroar a maravilha, doze cavaleiros que aparecem na décima segunda hora e desfilam ante o quadrante, fechando as portas, as portas das horas, com o que novo ciclo se inicia. A ninguém, igualmente, causará a máquina de Julius uma admiração fácil e exaltada como a que pede certo relógio de sol: os raios solares, atravessando uma lente, acendem um rastilho: com isto, um tiro de canhão celebra o meio-dia. Jean de Felains, ao instalar, em fins do século XIV, o relógio encomendado pela municipalidade de Ruão, ira-se ante os louvores, exclamando que a palavra relógio é mais fina e espantosa do que qualquer objeto ou mecanismo. Como este ilustre antepassado, é possível que Julius repudie em seu íntimo, ao fabricar o relógio, toda espécie de admiração. Visto exigir do observador um conhecimento geral das leis que regem a sua invenção, sem o que facilmente parecerá fastidiosa, irregular e destituída de um conhecimento aprofundado do ofício, quem sabe até se não visa, com ela, enervar, desagradar, intrigar, perturbar, inquietar ou provocar julgamentos ásperos? Semelhantes obras, coisa que a tantos escapa, não surgem facilmente ou com clareza. Os desenhos e os cálculos, na maioria das vezes, distanciam-se do projeto inicial. Mal se reconhece, por isto, no plano final de Julius, seu primeiro esboço, havendo sido abandonadas - sem deixar vestígios - numerosas idéias que, uma vez a obra definida, lhe parecem ingênuas e rebuscadas, como a de um mostrador de 24 horas, em vez de 12, repetindo o modelo Renascentista de Chartres. Em nenhum momento, porém, vacila ante o princípio de que o seu relógio deve ser preciso. Isto porque todo relojoeiro deve ambicionar a exatidão; e em segundo lugar, por não lhe parecer que um mecanismo como o que elabora possa estar associado a engrenagens infiéis. No âmbito das possibilidades humanas e das limitações da sua oficina, tudo ele dispõe para não malograr no projeto. Seleciona o ferro, o latão, o aço, o bronze, a madeira da caixa. Não há uma só peça - cordas, rodas denteadas, pinhões, eixos, ponteiros, platinas, âncora ou colunas - que negligencie. Ao pêndulo, cujo desenho faz lembrar um cistro ou um alaúde, consagra extremos cuidados. Nenhuma outra peça de relógio é mais afetada pelas mudanças de temperatura; e qualquer aumento ou retração da haste, apressa ou adianta sua oscilação, variável também segundo as regiões da Terra. Julius, preterindo o pêndulo de aço-níquel de Riefler e o compensador de mercúrio, idealizado por Graham, decide-se pelo de Harrison. Distingue o engenhoso pêndulo de Harrison, a existência, não de uma vareta, mas de várias, com coeficientes diversos de dilatação. Pende o disco - ou lentilha, como o denominam alguns artífices - de varas de aço, ligadas nos extremos por barras de latão; outras varas, uma de aço e duas de zinco, ligam-se apenas à barra superior. Ao elevar-se a temperatura, as varetas de zinco se dilatam muito, não sucedendo o mesmo com as de aço, como se pode ler em qualquer manual de relojoaria avançada posterior a 1728. Com isto, fica praticamente resolvido o problema das mudanças de temperatura. Para a adaptação do mecanismo às várias longitudes da Terra, há, na extremidade inferior da haste, o parafuso regulador. Faltam-lhe defesas contra as alterações de pressão atmosférica. A lentilha, assim chamada devido ao formato de lente biconvexa e cuja oscilação é de 4 centímetros aproximadamente, tem um diâmetro invulgar: 193 milímetros; e suas bordas, antepondo o mínimo de resistência ao ar, são açuçadas a um limite inconcebível. Depois de roçar 600 ou 800 milhões de vezes, indo e vindo, como um pássaro dócil, no ar desta gaiola envidraçada (também, em seus trânsitos por terras e oceano, nem sempre a resguardam sedas ou flanelas), embota-se a quase imponderável finura que ostentam suas bordas ao saírem das mãos de Julius. Nova, porém, sua delicadeza espanta os entendidos. E qual o principal utensílio responsável por este resultado? A paciência do artesão. Todo o zelo que o descendente de Charles William Heckethorn aplica em seu trabalho não bastaria para o elevar à categoria de arquiobjeto, de obra pessoal e merecedora de exame. Teríamos, se se limitasse a isto, um produto artesanal de alta qualidade, amorosamente construído, porém inexpressivo. A novidade do relógio que tanto esforço exige do seu inventor e fabricante, reside no tríplice - ou quádruplo - sistema sonoro, gerado em sua infância entre alguns livros antigos. Sempre fiel ao cravo, escolhe, para trabalhar em seu projeto, a introdução da Sonata em Fá Menor (K 462), de Scarlatti. (Seria de esperar que preferisse uma passagem de Mozart, a quem não se cansa de admirar). Secciona a introdução em treze partes, numera-as pela ordem e, pondo de lado a penúltima, põe-se a manipular as outras doze. Distribuir esses grupos de notas de tal modo que se percam uns dos outros dentro do relógio, soem separados e só de tempos em tempos voltem a reunir-se - constituindo essa reunião um evento pleno de intenções -, eis o objetivo de Julius. Voltar a ouvir, íntegra, a frase de Scarlatti, será como testemunhar um eclipse. Os eclipses, para ele, afiguram-se o mais fascinante dentre os fenômenos que pedem - como tudo que merece existir e ser fruído - uma conjugação feliz de circunstâncias. Firmada esta preliminar, desenha e constrói três sistemas sonoros interrelacionados, designando-os pelas três primeiras letras do alfabeto. O sistema A reúne os grupos de notas 1, 5 e 11, funcionando com os intervalos de quatro, uma e seis horas, ou seja, cumpre-se em onze horas: soa, na primeira vez em que ocorre, o grupo de notas 1; na segunda, os grupos 1 e 5 soam; na terceira, os três. Este processo acumulativo repete-se nos outros dois sistemas. Outros grupos, quatro - o 2, o 4, o 7 e o 9 -, cabem ao sistema B, cujo ciclo é de treze horas, aos intervalos de duas, duas, três e seis horas. Maior é o sistema C, que abrange cinco grupos de notas: o 3, o 6, o 8, o 10 e o 13. Também seu ciclo é o mais longo de todos, com os intervalos de quatro, três, cinco, seis e três horas sucessivamente, totalizando portanto vinte e uma. Em todos estes sistemas há interrupções. Exemplo: antes de soar, completa, a série C, observa-se um silêncio; este silêncio aguarda que ressoem (mas raramente ressoam) o grupo 1 do sistema A e o grupo 2 do sistema B; entre os sons do grupo 3 e os do grupo 6, nova pausa sobrevém e é aí que deverão vibrar, acontecimento também raro, as melodiosas notas dos grupos 4 e 5; o mesmo entre os grupos 6 e 8; entre o 8 e o 10; e entre o 10 e o 13. Funciona o aparelho de som como um jogo de armar e do qual só tivéssemos, de cada vez, certo número de peças, sempre variáveis. Estas, postas no seu lugar, deixam muitos vazios a serem preenchidos; mas quando temos as peças destinadas àqueles claros, então nos faltam outras. O jogo raramente se completa, e, visto por partes, não é compreensível. Numa réplica intencional da nossa própria existência - incapazes que somos de prever se o instante para o qual nos voltamos será ou não decisivo -, nem todas as horas são marcadas com alguns fragmentos de Scarlatti. Muitas vezes, o ponteiro dos minutos cruza em silêncio o número 12, de modo que nunca sabemos se a próxima hora fará cantarem as engrenagens. Aduzir que não se destina a invenção de Julius, como em tantos relógios, a anunciar as horas, parece-nos ocioso. Vê-se claramente o que pretende, criar um símbolo da ordem astral. Não, por certo, à maneira de Jean-Baptiste Schwilgué, construtor do último relógio de Estrasburgo, com o seu mecanismo de equações solares e lunares, agulhas indicadoras do Sol e da Lua, esfera celeste, mostrador do tempo aparente e anel do tempo civil. Julius quer evocar as conjunções do cosmos, mas poeticamente; não apenas a móbil ordem celeste, mas a harmonia de imponderáveis que permite a um homem encontrar a mulher com quem se funde, que faz nascer uma obra de arte, uma cidade, um reino. Cremos, se ignoramos seus segredos, escutar a voz do caos ante o relógio desse contemplador. Ouvindo-o dar, às sete ou às dez horas, quatro notas, seguidas de um silêncio e de mais sete ou vinte e cinco notas, ou, então, vendo correrem duas horas sem que nenhum rumor - salvo o do pêndulo - venha da engrenagem, deduzimos que a máquina, alternando silêncio e som, desdenha a ordem, ignora-a e serve à fúria. Não é sempre esta a nossa conclusão ante fenômenos que nos escapam? E pode alguém inculpar-nos se não captamos o sentido de desígnios que, difusos, parecem recusar todo esforço de compreensão? Também isto é visado por Julius: colocar as pessoas, frente aos sistemas de som do seu relógio, na mesma atitude de perplexidade que se sofre perante o Universo. Ainda uma intenção o orienta, representar o que há de aleatório em nossas existências. Sabemos, todavia, que o relógio de Julius Heckethorn, ou melhor, seus aprestos de som, obedecem a um esquema rigoroso. Sobre este rigor, assenta a idéia de uma ordem no mundo. Como introduzir, então, na obra, o princípio de imprevisto e de aleatório, inerente à vida? Cálculos elementares - se os compararmos aos empregados na confecção do pêndulo ou à sutileza dos sistemas de som - acusam um ciclo de cento e vinte e cinco dias e três horas para o reencontro dos astros por Heckethorn dispersos em seu pequeno cosmos. Ninguém, a não ser talvez um matemático, e matemático a quem não seja estranha a música de câmara, tem probabilidade de chegar a essa conclusão, sem indicações sobre as leis do mecanismo. A dificuldade de estabelecer-se um ponto inicial para o estudo do ciclo é acentuada por circunstâncias fortuitas. Pode-se estar dormindo ou ausente no momento em que soem, pela ordem, os doze fragmentos da introdução. Resta ainda um pormenor: ainda que estejamos próximos, e despertos, e os escutemos, não teremos ouvido toda a frase musical, desde que Julius, como foi visto, subdividiu-a em treze partes. A penúltima, não incluída nos três sistemas descritos, associou-a a um dispositivo que a faz vibrar de cinco em cinco horas. Com semelhante recurso, salta de cento e vinte e cinco dias e três horas para seiscentos e vinte e cinco e quinze horas o ensejo de ouvir-se, sem falha, a frase de Domenico Scarlatti. Ora, esta solução, se bem complique um pouco o esquema, também admite previsões exatas. Sabemos, entretanto, que Julius tem motivos para introduzir, na ordem, um preceito de desordem. Que faz então? Fabrica de maneira imperfeita o dispositivo complementar, atingido - e portanto desregulado - sempre que a temperatura sobe, pela dilatação de uma delgada barra de zinco, posta de maneira apropriada. Assim, há momentos em que o penúltimo grupo de notas, chegando a hora de soar, não soa; inversamente, às vezes dá um salto, soando com uma hora ou duas de antecedência. O que decorre desta inexatidão é evidente: tanto pode antecipar a inserção das penúltimas notas na primeira confluência dos doze grupos restantes (aos cento e vinte e cinco dias e três horas), como pode adiar indefinidamente a conjunção perfeita das partes. Com tal imperfeição, o relógio de Julius alcança a perfeição. E como no projeto a que alude o incunábulo impresso em Basiléia, agora uma vida inteira pode decorrer sem que o mecanismo venha a repetir, da primeira à última nota, a introdução da sonata K 462 - denominada, por alguns adeptos do cravo, Sonata de Heckethorn. O valor simbólico que ele pretende incutir à sua obra foi alcançado: estudando-a, um indivíduo capaz de traduzir criptogramas lê quão incerto e entregue a imponderáveis é o destino humano; que a Ordem está sempre exposta a rompimento e que um pequeno fator tanto pode impedir como rematar as harmonias. Dois ou três anos consagra-os Julius à elaboração dos planos, manejando cálculos que o enervam e afetam a convivência com a mulher, para quem a cegueira já é familiar quando ele afinal os dá por terminados. A fabricação das peças, iniciada em 1933, poucos meses após a subida de Hitler ao poder, dura quatro anos e oito meses. Não falta muito para a conclusão, quando o intimam (como a outros relojoeiros, transformados em fabricantes de material bélico) a readaptar sua oficina, com o subseqüente silêncio dos carrilhões, cujo som constitui como que a sua atmosfera natural. O espectador do mundo, preocupado com o equilíbrio, com as junções felizes e afeito à fragilidade, passará a trabalhar para a Luftwaffe. Levanta-se uma noite disposto a incendiar o relógio. Não o faz. Volta a deitar-se e durante vários dias tritura essa idéia nos dentes. Todo alimento sabe a vidro e areia. Enfim, desiste. Não por amor à sua obra, mas por compreender de súbito que algo bem diverso de um relógio e a que, até então, mais que Heidi Heckethorn, esteve cego, forma-se com rapidez, de modo inexorável, não poupando ninguém. Aos treze anos, lê, num estudo sobre o modo como é vista, no Renascimento, a ciência medieval, a história de um homem cujos chifres crescem para dentro e que destrói o mundo à medida que essas raízes furam-lhe os miolos, atravessam a garganta, escavam o coração e esgalham-se. Hitler, para ele, é aquele homem. Destruir o relógio, tão laboriosamente construído, parece-lhe o anúncio, em escala restrita, do que os chifres internos do Fuehrer vão deflagrar em proporções amplas. O relógio está pronto, mas ele não se dispõe a acioná-lo. Questões vitais o obsedam. Em sua ânsia de abranger a totalidade das coisas, não terá voltado às costas ao fato particular? Não será ele próprio um erro na máquina? Que máquina? A Máquina da História? Deve pôr em movimento a sua invenção? Para as horas que se acumulam no tempo como hordas, marcadas por uma brutalidade cuja natureza ele ainda não entende com clareza, são inúteis relógios como este. Diz-lhe um sonho: os mostradores serão de pele humana; os pêndulos, balouço da Morte; sangue, em vez de azeite, lubrificará os eixos e os pinhões; e os ponteiros vão girar para trás. Não tem ainda resposta para uma só das perguntas que o fustigam, quando recebe um telegrama do Münster: a mãe de Heidi está agonizando. Viaja com a mulher. Ouve-a, à medida que os vagões verde-escuro percorrem as estações, descrever uma Alemanha de sonho, evocada pelos nomes dos lugares e oposta à verdadeira. Este país de torres e de mirtos, onde navios singram a paisagem, gerado nas trevas de Heidi, comove-o e agrava sua inquietude. Após as exéquias, o viúvo roga que a filha permaneça em sua companhia nessas primeiras semanas. Julius regressa sozinho e sozinho se decide. Desarma o relógio, volta a Münster e sonda o corretor. O que ouve, assombra-o: Hampl está embriagado pelas idéias de Hitler. Sem nada lhe dizer, Julius conversa uma noite inteira com a mulher, convence-a a atravessar a fronteira e, favorecido pela ascendência inglesa, instala em Haia, não longe do Museu Mermanno-Westreenianun, uma oficina para consertos de relógios. Cinco meses depois ouve no rádio que a Austria foi anexada. Então, dirige-se ao relógio e o põe em marcha. À cegueira de Heidi, vêm acrescentar-se, em Haia, dores intensas nos olhos. Julius, apreensivo, consulta especialistas. Suas despesas crescem. A afluência à oficina é pouco numerosa. Ele assume algumas aulas particulares de música. Heidi, porém, não é beneficiada com os florins assim obtidos pelo esposo. A juventude em Londres, os dias encantados em que descobre o cravo e Wolfgang Amadeus Mozart, tudo isto Julius revê nos alunos. Decide retomar os estudos musicais. Emma Ledeboer aceita-o como discípulo. Aplicado em eliminar os vícios adquiridos em anos de exercícios solitários, ele mal se apercebe de que as dívidas crescem. Após um acesso mais doloroso que os outros, os médicos sugerem a Heidi consultar certo especialista em Rotterdam. Julius, que não quer interromper os estudos, põe o relógio à venda. O embaixador sueco o adquire. No trem, de volta, Heckethorn aflige-se com as novas: Hitler arremete para o Norte. Inversamente, sobrevém certo alívio em sua vida. Com o novo tratamento, as nevralgias da esposa, que se intensificavam de modo intolerável, extinguem-se; Emma Ledeboer, impressionada com a evolução desse aluno invulgar, dispensa-o de pagamento e, meses depois, recomenda-o a um quinteto de câmara que programa visitar a América. Julius acolhe a oportunidade. Bem sabe que as fronteiras da Holanda não o protegerão da violência. (Hitler incendeia a Polônia. A Inglaterra e a França participam agora do conflito.) Seu plano é não voltar a esse continente cada vez mais ameaçador. Instalado em algum país americano, Heidi irá encontrá-lo. A excursão está programada para julho. Em fins de abril, reaparecem as dores nas pupilas da cega. Ele a acompanha outra vez a Rotterdam. O médico sugere que ela permaneça na clínica alguns dias. A 8 de maio, Julius regressa a Haia; a 10, as tropas alemãs agridem simultâneamente o Luxemburgo, a Bélgica e a Holanda; a 13, Guilhermina asila-se na Inglaterra; a 15, o exército holandês depõe as armas. J. H. não revê a mulher, um dos 35.000 mortos no bombardeio da Luftwaffe a Rotterdam. A 30 de maio, após um julgamento de seis minutos e meio, no qual em nada o ajuda - antes contribui para a condenação - a sua origem inglesa, é fuzilado como traidor. Os invasores, cônscios da inutilidade dos cálculos e esboços para uma acordina encontrados entre os seus papéis, quando - neste produtivo e destrutivo mundo - só têm sentido os relógios de ponto e os cronômetros de precisão, incineram-nos junto com todos os outros documentos do homem cuja vida é o oposto da desejada harmonia expressa em seu relógio. Mesmo antes das incursões aéreas, tem-se como certa, nos meios oficiais, a invasão da Holanda. O relógio de Julius, vendido pelo diplomata sueco à esposa do representante brasileiro, desce aos porões da Embaixada, cuidadosamente encaixotado. Evidencia-se, às primeiras bombas, temerário e inútil permanecer no país. O acreditado do Itamarati, imitando, na emergência, outros diplomatas de ultramar, foge para Lisboa, não levando senão aqueles objetos escolhidos pela embaixatriz, a quem devota um amor incongruente, apesar de estarem casados há mais de vinte anos. Nervosa e trêfega, torna-a fascinante a imaginação inquieta, nunca aplicada em alguma tarefa definida e sim dispersa em atos quase sempre requintados, não raro afins à pura extravagância. Leva apenas os cristais, as baixelas de prata, um sari, bolas de gude (às vezes, sozinha, diverte-se horas inteiras, jogando com elas sobre os grandes tapetes da Embaixada, alguns dos quais utiliza para proteger as coisas transportadas), e jarros chineses da época azul, uma fotografia da rainha com dedicatória, o diadema oferecido por um velho amigo do Nepal, remédios para enjôo e trinta e oito pares de sapatos. O relógio de Julius fica no porão, esquecido com outras alfaias. Custam a obter transporte marítimo para o Brasil. Os salvados de guerra ficam em Portugal, sob custódia, menos os cristais, pulverizados no trajeto entre Haia e Lisboa. (Durante anos, a embaixatriz alude a este prejuízo, maldizendo a guerra que reduziu a pó as suas taças. Também lamenta a rainha (não a Holanda), obrigada a viver na Inglaterra, longe dos seus jardins.) Ei-la no Peru, nova missão do esposo. Os objetos deixados em Lisboa são enviados por mar. A embaixatriz, que nunca lê jornais, repassa atenta os noticiários. Teme que afundem o cargueiro. Tudo, porém, vem ter às suas mãos, o que não a impede de enervar-se: o sari não tem as mesmas cores de outrora, ou, ao menos, as cores são menos brilhantes que as adquiridas em sua imaginação. Não está longe outra viagem do casal e dos seus pertences: o embaixador é designado para Roma. Onze meses mais tarde, finda a guerra, vem uma mensagem dos Países Baixos, com o lacre da Chancelaria, indagando se acaso lhes pertence um relógio de caixa encontrado entre as ruínas da antiga Embaixada do Brasil. A consulta alvoroça-os. Haverão mesmo esquecido algum relógio? A partir do momento em que a embaixatriz, removendo os jarros, vestidos, adereços, risos, perfumes e cortinas que flutuam nos festivos porões da sua memória, redescobre o relógio, parece-lhe urgente reavê-lo. Viaja na mesma semana para Haia e, de volta, orna com ele um dos corredores da Embaixada, na Piazza Navona, onde o seu doce rumor por vezes se confunde com o das fontes luminosas. Jubilado o embaixador, regressam ao Brasil. Aqui, as depressões nervosas que a embaixatriz sofre na Europa e que desaparecem com as sucessivas e faustosas recepções na Embaixada, agravam-se. Morre em 53, sob o lençol carmezim e debruado a ouro. Roga que a enterrem com o diadema do Nepal - e sob o travesseiro, no leito mortuário, os parentes descobrem várias bolas de gude coloridas. Viúvo, o embaixador, nostálgico de uma Europa que não mais existe e incapaz de readaptar-se ao seu país, vende em leilão os seus trastes e viaja, para não mais voltar, esperando encontrar amigos que morreram ou que nem sequer se lembram dele ou da embaixatriz. Agora, aí está o relógio, há doze anos e meio aí está, ante tapetes sem vida e poltronas fanadas, elegante e sóbrio, soando de tempos em tempos, com os seus misteriosos sons. Já ninguém acredita que os aparelhos sonoros, se é que existe mesmo mais de um, reconstituam a frase de Scarlatti. Nem sequer ocorre (a quem ocorreria?) que as engrenagens ajustadas e expostas à falha calculada, voluntária, do mecanismo imperfeito, marcham calmamente para esse milagre: a confluência, o eclipse. Julius, perdido no pó, ouvirá esse momento?

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