UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema P - O Relógio de Julius Heckethorn [P6]

Sim, Julius Heckethorn, dentre outros motivos, não menospreza o fato de o beneditino Gerberto de Aquitânia, residente em Córdova num tempo em que a esplêndida filha do Guadalquivir não é apenas a cidade das mil mesquitas, das fontes de mercúrio e dos tetos com pedras preciosas, passar à posteridade como versado na Aritmética e na Cosmogonia árabes. É, portanto, fundado em precedentes vários que abandona a idéia arcaizante da água ou do azeite como princípio motor do seu relógio, e opta em definitivo por um mecanismo a saltos. O tempo, flua ou não, repudia as interrupções, os seccionamentos. Contesta-se, no entanto, a tendência do homem a imprimir-lhe um ritmo? Este ritmo surge - é conquistado - com o relógio a saltos. A saltos move-se no corpo o sangue, a saltos atuam os pulmões, move-nos a saltos, mesmo as aves de mais tranqüilo vôo a saltos se deslocam, nadam os peixes movendo, a saltos, as barbatanas, dia e noite são saltos, ir e vir, passar e ressurgir, sim e sim, não e não, e a própria consciência que temos de existir não é contínua, toma-nos e foge, vez por outra assalta-nos, a saltos. Um erro ambicionarmos, para a representação do tempo, engenhos contínuos, nunca interrompidos, sem pausas, renegando a nossa natureza, que pulsa como pulsam os pulsos - e que tudo corta, como corta o pensamento, em palavras, em sílabas, em letras. Acentua ainda sua decisão: a presença, no mecanismo do relógio a saltos, do cabelo e das molas, corações metálicos da engrenagem, peças em espiral e, a seu modo, figurações palpáveis do tempo, tão claras qual se fossem, da palavra tempo, a representação ideográfica. Não sendo Julius, no mundo da relojoaria, um nome, portador de longa tradição, e sim um amador com idéias, reconhece faltarem-lhe credenciais para sequer aspirar a construir um relógio astronômico como o da catedral de Lyon. Insensato, igualmente, elaborar planos para um relógio musical de grandes proporções, tal o da Prefeitura de Iena; o de Lunden, na Suécia; o Jacquemart, de Westminster. Onde um Carlos V, de França, para confiar-lhe uma encomenda como o famoso relógio do Palácio? Nenhum potentado ou administrador entregará a um obscuro cravista e fabricante de carrilhões na Floresta Negra um relógio de torre (Julius tem o esboço de um modelo inspirado no da catedral de Troyes) ou sequer algum relógio público, dos que luzem nas praças ou edifícios oficiais, embora ele imagine alguns ainda mais interessantes do que, por exemplo, o da estação de Waterloo, com quatro mostradores e sem mecanismo visível. Por outro lado, ele sabe: os costumes mudaram. As cidades já não precisam de relógios para os seus habitantes e o sentido como que sacral das horas (hálito do tempo?) perdeu-se para os homens. As informações relacionadas com o sentido rítmico do tempo também caíram em desuso e agora o rádio assume a função dos campanários, informando a esmo a passagem das horas, em cutiladas e não em obediência a um rito. A idéia original, então, é construir um objeto mais ou menos portátil, uma acordina de parede. Os primeiros desenhos convencem-no de que terá maiores possibilidades de cumprir o projeto se dispuser de mais espaço. Um relógio de caixa, eis a medida ideal. A linhagem a que se filia a sua criação, bem o vimos, não é a dos relógios monumentais; nem é a dos relógios graciosos. Dir-se-á ao menos que Julius Heckethorn, com o seu relógio, inscrevese de modo indiscutível entre os relojoeiros? Com maior força de justiça poderá ser incluído entre os intérpretes ou contempladores do universo. Por sinal, nos meses em que desenha o mecanismo, o livro que traz sempre consigo não é o Arte de Reloxes ou a Memória sobre o Centro de Oscilação do Pêndulo, de Jean Bernovilli de Basiléia, e sim, numa edição holandesa, o Manual de Astronomia Árabe, de Alfraganus.

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