UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins
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Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito
temas, indicados pelas letras
R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA
ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito
títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência
da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.
No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos
em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu
desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto
pelo próprio autor.
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Você está em Leitura por temas » Tema P - O Relógio de Julius Heckethorn [P10]
À cegueira de Heidi, vêm acrescentar-se, em Haia, dores intensas nos olhos. Julius, apreensivo, consulta especialistas. Suas despesas crescem. A afluência à oficina é pouco numerosa. Ele assume algumas aulas particulares de música. Heidi, porém, não é beneficiada com os florins assim obtidos pelo esposo. A juventude em Londres, os dias encantados em que descobre o cravo e Wolfgang Amadeus Mozart, tudo isto Julius revê nos alunos. Decide retomar os estudos musicais. Emma Ledeboer aceita-o como discípulo. Aplicado em eliminar os vícios adquiridos em anos de exercícios solitários, ele mal se apercebe de que as dívidas crescem. Após um acesso mais doloroso que os outros, os médicos sugerem a Heidi consultar certo especialista em Rotterdam. Julius, que não quer interromper os estudos, põe o relógio à venda. O embaixador sueco o adquire.
No trem, de volta, Heckethorn aflige-se com as novas: Hitler arremete para o Norte. Inversamente, sobrevém certo alívio em sua vida. Com o novo tratamento, as nevralgias da esposa, que se intensificavam de modo intolerável, extinguem-se; Emma Ledeboer, impressionada com a evolução desse aluno invulgar, dispensa-o de pagamento e, meses depois, recomenda-o a um quinteto de câmara que programa visitar a América. Julius acolhe a oportunidade. Bem sabe que as fronteiras da Holanda não o protegerão da violência. (Hitler incendeia a Polônia. A Inglaterra e a França participam agora do conflito.) Seu plano é não voltar a esse continente cada vez mais ameaçador. Instalado em algum país americano, Heidi irá encontrá-lo. A excursão está programada para julho. Em fins de abril, reaparecem as dores nas pupilas da cega. Ele a acompanha outra vez a Rotterdam. O médico sugere que ela permaneça na clínica alguns dias. A 8 de maio, Julius regressa a Haia; a 10, as tropas alemãs agridem simultâneamente o Luxemburgo, a Bélgica e a Holanda; a 13, Guilhermina asila-se na Inglaterra; a 15, o exército holandês depõe as armas.
J. H. não revê a mulher, um dos 35.000 mortos no bombardeio da Luftwaffe a Rotterdam. A 30 de maio, após um julgamento de seis minutos e meio, no qual em nada o ajuda - antes contribui para a condenação - a sua origem inglesa, é fuzilado como traidor. Os invasores, cônscios da inutilidade dos cálculos e esboços para uma acordina encontrados entre os seus papéis, quando - neste produtivo e destrutivo mundo - só têm sentido os relógios de ponto e os cronômetros de precisão, incineram-nos junto com todos os outros documentos do homem cuja vida é o oposto da desejada harmonia expressa em seu relógio.
Mesmo antes das incursões aéreas, tem-se como certa, nos meios oficiais, a invasão da Holanda.
O relógio de Julius, vendido pelo diplomata sueco à esposa do representante brasileiro, desce aos porões da Embaixada, cuidadosamente encaixotado.
Evidencia-se, às primeiras bombas, temerário e inútil permanecer no país. O acreditado do Itamarati, imitando, na emergência, outros diplomatas de ultramar, foge para Lisboa, não levando senão aqueles objetos escolhidos pela embaixatriz, a quem devota um amor incongruente, apesar de estarem casados há mais de vinte anos. Nervosa e trêfega, torna-a fascinante a imaginação inquieta, nunca aplicada em alguma tarefa definida e sim dispersa em atos quase sempre requintados, não raro afins à pura extravagância. Leva apenas os cristais, as baixelas de prata, um sari, bolas de gude (às vezes, sozinha, diverte-se horas inteiras, jogando com elas sobre os grandes tapetes da Embaixada, alguns dos quais utiliza para proteger as coisas transportadas), e jarros chineses da época azul, uma fotografia da rainha com dedicatória, o diadema oferecido por um velho amigo do Nepal, remédios para enjôo e trinta e oito pares de sapatos. O relógio de Julius fica no porão, esquecido com outras alfaias.
Custam a obter transporte marítimo para o Brasil. Os salvados de guerra ficam em Portugal, sob custódia, menos os cristais, pulverizados no trajeto entre Haia e Lisboa. (Durante anos, a embaixatriz alude a este prejuízo, maldizendo a guerra que reduziu a pó as suas taças. Também lamenta a rainha (não a Holanda), obrigada a viver na Inglaterra, longe dos seus jardins.)
Ei-la no Peru, nova missão do esposo. Os objetos deixados em Lisboa são enviados por mar. A embaixatriz, que nunca lê jornais, repassa atenta os noticiários. Teme que afundem o cargueiro. Tudo, porém, vem ter às suas mãos, o que não a impede de enervar-se: o sari não tem as mesmas cores de outrora, ou, ao menos, as cores são menos brilhantes que as adquiridas em sua imaginação.
Não está longe outra viagem do casal e dos seus pertences: o embaixador é designado para Roma.
Onze meses mais tarde, finda a guerra, vem uma mensagem dos Países Baixos, com o lacre da Chancelaria, indagando se acaso lhes pertence um relógio de caixa encontrado entre as ruínas da antiga Embaixada do Brasil. A consulta alvoroça-os. Haverão mesmo esquecido algum relógio? A partir do momento em que a embaixatriz, removendo os jarros, vestidos, adereços, risos, perfumes e cortinas que flutuam nos festivos porões da sua memória, redescobre o relógio, parece-lhe urgente reavê-lo. Viaja na mesma semana para Haia e, de volta, orna com ele um dos corredores da Embaixada, na Piazza Navona, onde o seu doce rumor por vezes se confunde com o das fontes luminosas.
Jubilado o embaixador, regressam ao Brasil. Aqui, as depressões nervosas que a embaixatriz sofre na Europa e que desaparecem com as sucessivas e faustosas recepções na Embaixada, agravam-se. Morre em 53, sob o lençol carmezim e debruado a ouro. Roga que a enterrem com o diadema do Nepal - e sob o travesseiro, no leito mortuário, os parentes descobrem várias bolas de gude coloridas. Viúvo, o embaixador, nostálgico de uma Europa que não mais existe e incapaz de readaptar-se ao seu país,
vende em leilão os seus trastes e viaja,
para não mais voltar, esperando encontrar amigos que morreram ou que nem sequer se lembram dele ou da embaixatriz.
Agora, aí está o relógio, há doze anos e meio aí está, ante tapetes sem vida e poltronas fanadas, elegante e sóbrio, soando de tempos em tempos, com os seus misteriosos sons. Já ninguém acredita que os aparelhos sonoros, se é que existe mesmo mais de um, reconstituam a frase de Scarlatti. Nem sequer ocorre (a quem ocorreria?) que as engrenagens ajustadas e expostas à falha calculada, voluntária, do mecanismo imperfeito, marcham calmamente para esse milagre: a confluência, o eclipse. Julius, perdido no pó, ouvirá esse momento?
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