Aleixo

Conto, contei, contar, narrar

Jazevedão

Mire, veja, senhor

Nhorinhá

O diabo, capiroto, que-diga, demo

O julgamento

O menino

O pacto

Pedro Pindó

Por mim, tantos vi, que aprendi. Rincha-Mãe, Sangue-d'Outro, o Muitos-Beiços, o Rasga-em-Baixo, Faca-Fria, o Fancho-Bode, um Treciziano, o Azinhavre... o Hermógenes... Deles, punhadão.

O diabo existe e não existe?Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso...

Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem - ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! - é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido. Este caso - por estúrdio que me vejam é de minha certa importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela - já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças - eu digo. Pois não é ditado: "menino - trem do diabo"? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes...O diabo na, rua,no meio do redemunho ...

Hem? Hem? Ah. Figuração minha, de pior pra trás, as certas lembranças. Mal haja-me! Sofro pena de contar não... Melhor, se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-brava, que mata? Agora, o senhor já viu uma estranhez? A mandioca-doce pode de repente virar azangada -motivos não sei; às vezes se dizgrande sertão: veredas 11

que é por replantada no terreno sempre, com mudas seguidas, de manaíbas - vai em amargando, de tanto em tanto, de si mesma toma peçonhas. E, ora veja: a outra, a mandioca-brava, também é que às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal. E que isso é? Eh, o senhor já viu, por ver, a feiúra de ódio franzido, carantonho, nas faces duma cobra cascavel? Observou o porco gordo, cada dia mais feliz bruto, capaz de, pudesse, roncar e engulir por sua suja comodidade o mundo todo? E gavião, corvo, alguns, as feições deles já representam a precisão de talhar para adiante, rasgar e estraçalhar a bico, parece uma quicé muito afiada por ruim desejo. Tudo. Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas -que estragam mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo dentro delas dorme: são o demo. Se sabe? E o demo - que é só assim o significado dum azougue maligno - tem ordem de seguir o caminho dele, tem licença para campear?! Arre, ele está misturado em tudo.

Que o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos, é o razoável sofrer. E a alegria de amor - compadre meu Quelemém diz. Família. Deveras? É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os depois - e Deus, junto. Vi muitas nuvens.

Mas, em verdade, filho, também, abranda. Olhe: um chamado Aleixo, residente a légua do Passo do Pubo, no da-Areia, era o homem de maiores ruindades calmas que já se viu. Me agradou que perto da casa dele tinha um açudinho, entre as palmeiras, com traíras, pra-almas de enormes, desenormes, ao real, que receberam fama; o Aleixo dava de comer a elas, em horas justas, elas se acostumaram a se assim das locas, para papar, semelhavam ser peixes ensinados. Um dia, só por graça rústica, ele matou um velhinho que por lá passou, desvalido rogando esmola. O senhor não duvide - tem gente, neste aborrecido mundo, que matam só para ver alguém fazer careta... Eh, pois, empós, o resto o senhor prove: vem o pão, vem a mão, vem o são, vem o cão. Esse Aleixo era homem afamilhado, tinha filhos pequenos; aqueles eram o amor dele, todo, despropósito. Dê bem, que não nem um ano estava passado, de se matar o velhinho pobre, e os meninos do Aleixo aí
adoeceram. Andaço de sarampão, se disse, mas complicado; eles nunca saravam. Quando, então, sararam.

12 joão guimarães rosaMas os olhos deles vermelhavam altos, numa inflama de sapiranga à rebelde; e susseguinte - o que não sei é se foram todos duma vez, ou um logo e logo outro e outro - eles restaram cegos. Cegos, sem remissão dum favinho de luz dessa nossa! O senhor imagine: uma escadinha três meninos e uma menina - todos cegados. Sem remediável. O Aleixo não perdeu o juízo; mas mudou: ah, demudou completo - agora vive da banda de Deus, suando para ser bom e caridoso em todas suas horas da noite e do dia. Parece até que ficou o feliz, que antes não era. Ele mesmo diz que foi um homem de sorte, porque Deus quis ter pena dele, transformar para lá o rumo de sua alma. Isso eu ouvi, e me deu raiva. Razão das crianças. Se sendo castigo, que culpa das hajas do Aleixo aqueles meninozinhos tinham?!

Compadre meu Quelemém reprovou minhas incertezas. Que, por certo, noutra vida revirada, os meninos também tinham sido os mais malvados, da massa e peça do pai, demônios do mesmo caldeirão de lugar. Senhor o que acha? E o velhinho assassinado? - eu sei que o senhor vai discutir. Pois, também. Em ordem que ele tinha um pecado de crime, no corpo, por pagar. Se a gente - conforme compadre meu Quelemém é quem diz-se a gente torna a encarnar renovado, eu cismo até que inimigo de morte, pode vir como filho do inimigo. Mire veja: se me digo, tem um sujeito Pedro Pindó, vizinho daqui mais seis léguas, homem de bem por tudo em tudo, ele e a mulher dele, sempre sidos bons de bem. Eles têm um filho duns dez anos, chamado Valtêi - nome moderno, é o que o povo daqui agora aprecêia, o senhor sabe. Pois essezinho, esse-zim, desde que algum entendimento alumiou nele, feito mostrou o que é: pedido madrasto, azedo queimador, gostoso de ruim de dentro do fundo das espécies de sua natureza. Em qual que judia, ao devagar, de todo bicho ou criaçãozinha pequena que pega; uma vez, encontrou uma crioula benta-bêbada dormindo, arranjou um caco de garrafa, lanhou em três pontos a popa da perna dela. O que esse menino babeja vendo, é sangrarem galinha ou esfaquear porco. -"Eu gosto de matar..." - uma ocasião ele pequenino me disse. Abriu em mim um susto; porque: passarinho que se debruça - o vôo já está pronto! Pois, senhor vigie: o pai, Pedro Pindó,
modo de corrigir isso, e a mãe, dão nele, de
miséria e mastro - botam o menino sem comer, amarram em árvores no terreiro, ele nú nuelo, mesmo em junho frio, lavram o corpinho dele na peia e

grande sertão: veredas 13na taca, depois limpam a pele do sangue, com cuia de sal - moura. A gente sabe, espia, fica gasturado. O menino já rebaixou de magreza, os olhos entrando, carinha de ossos, encaveirada, e entisicou, o tempo todo tosse, tossura da que puxa secos peitos. Arre, que agora, visível, o Pindó e a mulher se habituaram de nele bater, de pouquinho em pouquim foram criando nisso um prazer feio de diversão - como regulam as sovas em horas certas confortáveis, até chamam gente para ver o exemplo bom. Acho que esse menino não dura, já está no blimbilim, não chega para a quaresma que vem... Uê-uê, então?! Não sendo como compadre meu Quelemém quer, que explicação é que o senhor dava? Aquele menino tinha sido homem. Devia, em balanço, terríveis perversidades. Alma dele estava no breu. Mostrava. E, agora, pagava. Ah, mas, acontece, quando está chorando e penando, ele sofre igual que se fosse um menino bonzinho... Ave, vi de tudo, neste mundo! Já vi até cavalo com soluço... - o que é a coisa mais custosa que há.

Bem, mas o senhor dirá, deve de: e no começo - para , pecados e artes, as pessoas - como por que foi que tanto emendado se começou? Ei, ei, aí todos esbarram. Compadre meu Quelemém, também. Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal. Sou muito pobre coitado. Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração. Não é que eu esteja analfabeto. Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive mestre, Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as operações, regra-de-três, até geografia e estudo pátrio. Em folhas grandes de papel, com capricho tracei bonitos mapas. Ah, não é por falar: mas, desde do começo, me achavam sofismado de ladino. E que eu merecia de ir para cursar latim, em Aula Régia - que também diziam. Tempo saudoso! Inda hoje, apreceio um bom livro, despaçado. Na fazenda O Limãozinho, de um meu amigo Vito Soziano, se assina desse almanaque grosso, de logogrifos e charadas e outras divididas matérias, todo ano vem. Em tanto, ponho primazia é na leitura proveitosa, vida de santo, virtudes e exemplos - missionário esperto engambelando os índios, ou São Francisco de Assis, Santo Antônio. São Geraldo... Eu gosto muito de moral. Raciocinar, exortar os outros para o bom caminho, aconselhar a justo. Minha mulher, que o senhor sabe, zela por mim: muito reza. Ela é uma abençoável. Compadre meu Quelemém sempre diz que eu posso aquietar meu temer de consciência, que sendo bem-assistido, terríveis
bons-espíritos me protegem. Ipe! Com

14 João guimarães rosagosto... Como é de são efeito, ajudo com meu querer acreditar. Mas nem sempre posso. O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo...Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre - o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém! Olhe: o que devia de haver, era de se reunirem-se os sábios, políticos, constituições gradas, fecharem o definitivo a noção - proclamar por uma vez, artes assembléias, que não tem diabo nenhum, não existe, não pode. Valor de lei! Só assim, davam tranquilidade boa à gente. Por que o Governo não cuida?!

Ah, eu sei que não é possível. Não me assente o senhor por beócio. Uma coisa é pôr idéias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias...Tanta gente - dá susto se saber - e nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons... De sorte que carece de se escolher: ou a gente se tece de viver no safado comum, ou cuida só de religião só. Eu podia ser: padre sacerdote, se não chefe de jagunços; para outras coisas não fui parido. Mas minha velhice já principiou, errei de toda conta. E o reumatismo... Lá como quem diz: nas escorvas. Ahã.

Hem? Hem? O que mais penso. testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sarar da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu Moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico. embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório. Eu queria, rezar - o tempo todo. Muita gente não me aprova, acham que lei de Deus é privilégios, invariável. E eu! Bofe! Detesto! O que sou? - o que faço, que quero, muito curial. E em cara de todos faço, executado. Eu? - não tresmalho!

grande sertão: veredas 15

Olhe: tem uma preta, Maria Leôncia, longe daqui não mora, as rezas dela afamam muita virtude de poder. Pois a ela pago, todo mês - encomenda de rezar por mim um terço, todo santo dia, e, nos domingos, um rosário. Vale, se vale. Minha mulher não vê mal nisso. E estou, já mandei recado para uma outra, do Vau-Vau, uma Izina Calanga, para vir aqui, ouvi de que reza também com grandes mere-merências, vou efetuar com ela trato igual. Quero punhado dessas, me defendendo em Deus, reunidas de mim em volta... Chagas de Cristo!

Viver é muito perigoso... Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar. Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo. Montante, o mais supro, mais sério - foi Medeiro Vaz. Que um homem antigo... Seu Joãozinho Bem-Bem, o mais bravo de todos, ninguém nunca pôde decifrar como ele por dentro consistia. Joca Ramiro - grande homem príncipe! - era político. Zé-Bebelo quis ser político, mas teve e não teve sorte: raposa que demorou. Sô Candelário se endiabrou, por pensar que estava com doença má. Titão Passos era o pelo preço de amigos: só por via deles, de suas mesmas amizades, foi que tão alto se ajagunçou. Antônio Dó - severo bandido. Mas por metade; grande maior metade que seja. Andalécio, no fundo, um bom homem-de-bem, estouvado raivoso em sua toda justiça. Ricardão, mesmo, queria era ser rico em paz: para isso guerreava. Só o Hermógenes foi que nasceu formado tigre, e assassim. E o "Urutú-Branco"? Ah, não me fale. Ah, esse... tristonho levado, que foi - que era um pobre menino do destino...

Tão bem, conforme. O senhor ouvia, eu lhe dizia: o ruim com o ruim, terminam por as espinheiras se quebrar - Deus espera essa gastança. Moço! Deus é paciência. O contrário, é o diabo. Se gasteja. O senhor rela faca em faca - e afia - que se raspam. Até as pedras do fundo, uma dá na outra, vão-se arredondinhando lisas, que o riachinho rola. Por enquanto, que eu penso, tudo quanto há, neste mundo, é porque se merece e carece. Antesmente preciso. Deus não se comparece com refe, não arrocha o regulamento. Pra que? Deixa: bobo com bobo -um dia, algum estala e aprende: esperta. Só que, às vezes, por mais auxiliar, Deus espalha, no meio, um pingado de pimenta...

Haja? Pois, por um exemplo: faz tempo, fui, de trem, lá em Sete-Lagoas, para portes de consultar um médico,

16 joão guimarãe rosa

de nome me indicado. Fui vestido bem, e em carro de primeira, por via das dúvidas, não me sombrearem por jagunço antigo. Vai e acontece, que, perto mesmo de mim, defronte, tomou assento, voltando deste brabo Norte, um Moço Jazevedão, delegado profissional. Vinha com um capanga dele, um secreta, e eu bem sabia os dois, de que tanto um era ruim, como o outro ruim era. A verdade que diga, primeiro tive o estrito de me desbancar para um longe dali, mudar de meu lugar. Juízo me disse, melhor ficasse. Pois, ficando, olhei. E - lhe falo: nunca vi cara de homem fornecida de bruteza e maldade mais, do que nesse. Como que era urco, trouxo de atarracado, reluzia um crú nos olhos pequenos, e armava um queixo de pedra, sobrancelhonas; não demedia nem testa. Não ria, não se riu nem uma vez; mas, falando ou calado, a gente via sempre dele algum dente, presa pontuda de guará. Arre, e bufava, um poucadinho. Só rosneava curto, baixo, as meias-palavras encrespadas. Vinha reolhando, historiando a papelada - uma a uma as folhas com retratos e com os pretos dos dedos de jagunços, ladrões de cavalos e criminosos de morte. Aquela aplicação de trabalho, numa coisa dessas, gerava a ira na gente. O secreta, xereta, todo perto, sentado junto, atendendo, caprichando de ser cão. Me fez um receio, mas só no bobo do corpo, não no interno das coragens. Uma hora, uma daquelas laudas caiu - e eu me abaixei depressa, sei lá mesmo por quê, não quis, não pensei - até hoje crio vergonha disso - apanhei o papel do chão, e entreguei a ele. Daí, digo: eu tive mais raiva, porque fiz aquilo; mas aí já estava feito. O homem nem me olhou, nem disse nenhum agradecimento. Até as solas dos sapatos dele - só vendo - que solas duras grossas, dobradas de enormes, parecendo ferro bronze. Porque eu sabia: esse Jazevedão, quando prendia alguém, a primeira quieta coisa que procedia era que vinha entrando, sem ter que dizer, fingia umas pressas, e ia pisava em cima dos pés descalços dos coitados. E que nessas ocasiões dava gargalhadas, dava... Pois, osga! Entreguei a ele a folha de papel, e fui saindo de lá, por ter mão em mim de não destruir a tiros aquele sujeito. Carnes que muito pesavam... E ele umbigava um princípio de barriga barriguda, que me criou desejos...Com minha brandura, alegre que eu matava. Mas, as barbaridades que esse dele, gado fez e aconteceu, o senhor nem tem calo em coração para poder me escutar. Conseguiu de muito homem e mulher chorar sangue, por este simples universozinho nosso aqui. Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem

grande sertão: veredas 17é forte; com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal...

Tanto, digo: Jazevedão - um assim, devia de ter, precisava? Ah, precisa. Couro ruim é que chama ferrão de ponta. Haja que, depois -negócio particular dele - nesta vida ou na outra, cada Jazevedão, cumprido o que tinha, descamba em seu tempo de penar, também, até pagar o que deveu - compadre meu Quelemém está aí, para fiscalizar. O senhor sabe: o perigo que é viver...Mas só do modo, desses, por feio instrumento, foi que a jagunçada se findou. Senhor pensa que Antônio Dó ou Olivino Oliviano iam ficar bonzinhos por pura soletração de si, ou por rogo dos infelizes, ou por sempre ouvir sermão de padre! Te acho! Nos visos...

De jagunço comportado ativo para se arrepender no meio de suas jagunçagens, só deponho de um: chamado Joé Cazuzo - foi em arraso de um tirotêi', p'ra cima do lugar Serra-Nova, distrito de Rio-Pardo, no ribeirão Traçadal. A gente fazia má minoria pequena, e fechavam para riba de nós o pessoal dum Coronel Adalvino forte político, com muitos soldados fardados no meio centro, comando do Tenente Reis Leme, que depois ficou capitão. Aguentamos hora mais hora, e já dávamos quase de cercados. Aí, de bote, aquele Joé Cazuzo -homem muito valente-se ajoelhou giro no chão do cerrado, levantava os braços que nem esgalho de jatobá seco, e só gritava, urro claro e urro surdo: -..Eu vi a Virgem Nossa, no resplandor do Céu, com seus filhos de Anjos!..." Gritava não esbarrava. - "Eu vi a Virgem! ..." Ele almou? Nós desigualamos. Trape por meu cavalo - que achei -pulei em mal assento, nem sei em que rompe-tempo desatei o cabresto, de amarrado em pé de pau. Voei, vindo. Bala vinha. O cerrado estrondava. No mato, o medo da gente se sai ao inteiro, um medo propositado. Eu podia escoicear, feito burro bruto, dá-que, dá-que. Umas duas ou três balas se cravaram na borraina da minha sela, perfuraram de arrancar quase muita a pai na do encheio. Cavalo estremece em pró, em meio de galope, sei: pensa no dono. Eu não cabia de estar mais bem encolhido. Baleado veio também o surrão que eu tinha nas costas, com poucas minhas coisas. E outra, de fuzil, em ricochete decerto, esquentou minha coxa, sem me ferir, o senhor veja: bala faz o que quer - se enfiou impren-
sada, entre em mim e a aba da jereba! Tempos loucos...
Burumbum! o cavalo se ajoelhou em queda, morto quiçá,
e eu já caindo para diante, abraçado em folhagens grossas,

18 joão guimarães rosaramada e cipós, que me balançaram e espetavam, feito eu estava pendurado em teião de aranha...Aonde? Atravessei aquilo, vida roda... De medo em ânsia, rompi por, rasgar com meu corpo aquele mato, fui, sei lá - e me despenquei mundo abaixo, rolava para o oco de um grotão fechado de moitas, sempre me agarrava -rolava mesmo assim: depois - depois, quando olhei minhas mãos, tudo nelas que não era tirado sangue, era um amasso verde, nos dedos, de folhas vivas que puxei e masgalhei... Pousei no capim do fundo - e um bicho escuro deu um repulão, com um espirro, também dôido de susto: que era um papa-mel, que eu vislumbrei; para fugir, esse está somente. Maior sendo eu, me molhou meu cansaço; espichei tudo. E um pedacinho de pensamento: se aquele bicho irara tinha jazido lá, então ali não tinha cobra. Tomei o lugar dele. Existia cobra nenhuma. Eu podia me largar. Eu era só mole, moleza, mas que não amortecia os trancos, dentro, do coração. Arfei. Concebi que vinham, me matavam. Nem fazia mal, me importei não. Assim, uns momentos, ao menos eu guardava a licença de prazo para me descansar. Conforme pensei em Diadorim. Só pensava era nele. Um João - congo cantou. Eu queria morrer pensando em meu amigo Diadorim, mano-oh-mão, que estava na Serra do Pau-d' Arco, quase na divisa baiana, com nossa outra metade dos sô-candelários... Com meu amigo Diadorim me abraçava, sentimento meu ia-voava reto para ele... Ai, arre, mas: que esta minha boca não tem ordem nenhuma. Estou contando fora, coisas divagadas. No senhor me fio? Até-que, até-que. Diga o anjo-da-guarda... Mas, conforme eu vinha: depois se soube, que mesmo os soldados do Tenente e os cabras do Coronel Adalvino remitiram de respeitar o assopro daquele Joé Cazuzo. E que esse acabou sendo o homem, mais pacificioso do mundo, fabricador de azeite e sacristão, no São Domingos Branco. Tempos!

Por tudo, réis-coado, fico pensando. Gosto. Melhor, para a idéia se bem abrir, é viajando em trem-de-ferro. Pudesse, vivia para cima e para baixo, dentro dele. Informação que pergunto: mesmo no Céu, fim de fim, como é que a alma vence se esquecer de tantos sofrimentos e maldades, no recebido e no dado? A como? O senhor sabe: há coisas de medonhas demais, tem. Dor do corpo e dor da idéia marcam forte, tão forte como o todo amor e raiva de ódio. Vai, mar... De sorte que, então, olhe: o Firmiano, por apelidado Piolho-de-Cobra, se lazarou com a perna desconforme engrossada, dessa doença que não se cura; e não

grande sertão: veredas 19enxergava quase mais, constante o branquiço nos olhos, das cataratas. De antes, anos, teve de se desarrear da jagunçagem. Pois, uma ocasião, algum esteve no rancho dele, no Alto Jequitaí, depois contou - que, vira tempo, vem assunto, ele dissesse: -"Me dá saudade é de pegar um soldado, e tal, pra uma boa esfola, com faca cega... Mas, primeiro, castrar..." O senhor concebe? Quem tem mais dose de demo em si é índio, qualquer raça de bugre. Gente vê nação desses, para lá fundo dos gerais de Goiás, adonde tem vagarosos grandes rios, de água sempre tão clara aprazível, correndo em deita de cristal roseado... Piolho-de-Cobra se dava de sangue de gentio. Senhor me dirá: mas que ele pronuncêia aquilo fora boca, maneira de representar que ainda não estava velho decadente. Obra de opor, por medo de ser manso, e causa para se ver respeitado. Todos tretam por tal regra: proseiam de ruins, para mais se valerem, porque a gente ao redor é duro dura. O pior, mas, é que acabam, pelo mesmo vau, tendo de um dia executar o declarado, no real. Vi tanta cruez! Pena não paga contar; se vou, não esbarro. E me desgosta, três que me enjoa, isso tudo. Me apraz é que o pessoal, hoje em dia, é bom de coração. Isto é, bom no trivial. Malícias maluqueiras, e perversidades, sempre tem alguma, mas escasseadas. Geração minha, verdadeira, ainda não eram assim. Ah, vai vir um tempo, em que não se usa mais matar gente... Eu, já estou velho.

Bom, ia falando: questão, isso que me sovaca... Ah, formei aquela pergunta, para compadre meu Quelemém. Que me respondeu: que por perto do Céu, a gente se alimpou tanto, que todos os feios passados se exalaram de não ser - feito sem-modez, de tempo de criança, más-artes. Como a gente não carece de ter remorso do que divulgou no latejo de seus pesadelos de uma noite. Assim que: tosou-se, floreou-se! Ahã. Por isso dito, é que a ida para o Céu é demorada. Eu confiro com compadre meu Quelemém, o senhor sabe: razão da crença mesma que tem -que, por todo o mal, que se faz, um dia se repaga, o exato. Sujeito assim madruga três vezes, em antes de querer facilitar em qualquer minudência repreensível... Compadre meu Quelemém nunca fala vazio, não subtrata. Só que isto a ele não vou expor. A gente nunca deve de declarar que aceita inteiro o alheio - essa é que é a regra do rei!

O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas -mas que elas vão sempre

20 joão guimarães rosamudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro -dá gosto! A força dele, quando quer - Moço! - me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho - assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza. A pois: um dia, num curtume, a faquinha minha que eu tinha caiu dentro dum tanque, só caldo de casca de curtir, barbatimão, angico, lá sei. - "Amanhã eu tiro..." - falei, comigo. Porque era de noite, luz nenhuma eu não disputava... Ah, então, saiba: no outro dia, cedo, a faca, o ferro dela, estava sido roído, quase por metade, por aquela agüinha escura, toda quieta. Deixei, para mais ver. Estala, espoleta! Sabe o que foi? Pois, nessa mesma da tarde, aí: da faquinha só se achava o cabo...O cabo - por não ser de frio metal, mas de chifre de galheiro. Aí está: Deus... Bem, o senhor ouviu, o que ouviu sabe, o que sabe me entende...

Somemos, não ache que religião afraca. Senhor ache o contrário. Visível que, aqueles outros tempos, eu pintava - crê que o caroá levanta a flor. Eh, bom meu pasto... Mocidade. Mas mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir. Também, eu desse de pensar em vago em tanto, perdia minha mão-de-homem para o manejo quente, no meio de todos. Mas, hoje, que raciocinei, e penso a eito - não nem por isso não dou por baixa minha competência, num fogo-e-ferro. A ver. Chegassem viessem aqui com guerra em mim, com más partes, com outras leis, ou com sobejos olhares, e eu ainda sorteio de acender esta zona, ai, se, se! É na boca do trabuco: é no té-retê-retém... E sozinhozinho não estou, há-de-o. Pra não isso, hei coloquei redor meu minha gente. Olhe o senhor: aqui, pegado, vereda abaixo, o Paspe - meeiro meu - é meu. Mais légua se tanto, tem o Acauã, e tem o Compadre Ciril, ele e três filhos, sei que servem. Banda desta mão, o Alaripe: soubesse o senhor o que é que se preza, em rifleio e à faca, um cearense feito esse! Depois mais: o João Nonato, o Quipes, o Pacamã-de-Presas. E o Fafafa - este deu lances altos, todo lado comigo, no combate velho do Tamanduá-tão: limpamos o vento de quem não tinha ordem de respirar, e antes esses desrodeamos...
O Fafafa tem uma eguada. Ele cria cavalos bons. Até um pouco mais longe, no pé-de-serra, de bando meu foram
o Sesfrêdo, Jesualdo, o Nelson e João
Concliz. Uns outros. O Triol... E não vou, valendo? Deixo terra com eles, deles o que é meu é, fecha-

grande sertão: veredas 21mos que nem irmãos. Para que eu quero ajuntar riqueza. Estão aí, de armas areia das. Inimigo vier, a gente cruza chamado, ajuntamos: é hora dum bom tiroteiamento em paz, exp'rimentem ver. Digo isto ao senhor, de fidúcia. Também, não vá pensar em dobro. Queremos é trabalhar, propor sossego. De mim, pessoa, vivo para minha mulher, que tudo modo-melhor merece, e para a devoção. Bem-querer de minha mulher foi que me auxiliou, rezas dela, graças. Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também - mas Diadorim é a minha neblina...

Agora, bem: não queria tocar nisso mais - de o Tinhoso; chega. Mas tem um porém; pergunto: o senhor acredita, acha fio de verdade nessa parlanda, de com o demônio se poder tratar pacto? Não, não é não? Sei que não há. Falava das favas. Mas gosto de toda boa confirmação. Vender sua própria alma... Invencionice falsa! E, alma, o que é? Alma tem de ser coisa interna supremada, muito mais do de dentro, e é só, do que um se pensa: ah, alma absoluta! Decisão de vender alma é afoitez vadia, fantasiado de momento, não tem a obediência legal. Posso vender essas boas terras, daí de entre as Veredas-Quatro -que são dum senhor Almirante, que reside na capital federal? Posso algum!? Então, se um menino menino é, e por isso não se autoriza de negociar... E a gente, isso sei, às vezes é só feito menino. Mal que em minha vida aprontei, foi numa certa meninice em sonhos -tudo corre e chega tão ligeiro -; será que se há lume de responsabilidades? Se sonha; já se fez... Dei rapadura ao jumento! Ahã. Pois. Se tem alma, e tem, ela é de Deus estabelecida, nem que a pessoa queira ou não queira. Não é vendível. O senhor não acha? Me declare, franco, peço. Ah, lhe agradeço. Se vê que o senhor sabe muito, em idéia firme. além de ter carta de doutor. Lhe agradeço, por tanto. Sua companhia me dá altos prazeres.

Em termos, gostava que morasse aqui, ou perto, era uma ajuda. Aqui não se tem convívio que instruir. Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso...

Eh, que se vai? Jàjá? É que não. Hoje, não. Amanhã, não. Não consinto. O senhor me desculpe, mas em empenho de minha amizade aceite: o senhor fica. Depois, quinta de-manhã-cedo, o senhor querendo ir, então vai, mesmo me deixa sentindo sua falta. Mas, hoje ou amanhã, não. Visita, aqui em casa, comigo, é por três dias!

22 João guimarães rosa,

Mas, o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de territórios, para sortimento de conferir o que existe? Tem seus motivos. Agora - digo por mim - o senhor vem, veio tarde. Tempos foram, os costumes demudaram. Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada. Os bandos bons de valentões repartiram seu fim; muito que foi jagunço, por aí pena, pede esmola. Mesmo que os vaqueiros duvidam de vir no comércio vestidos de roupa inteira de couro, acham que traje de gibão é feio e capiau. E até o gado no grameal vai minguando menos bravo, mais educado: casteado de zebú, desvém com o resto de curraleiro e de crioulo. Sempre, no gerais, é à pobreza, à tristeza. Uma tristeza que até alegra. Mas, então, para uma safra razoável de bizarrices, reconselho de o senhor entestar viagem mais dilatada. Não fosse meu despoder, por azías e reumatismo, aí eu ia. Eu guiava o senhor até tudo.

Lhe mostrar os altos claros das Almas: rio despenha de lá, num afã, espuma próspero, gruge; cada cachoeira, só tombos. O cio da tigre preta na Serra do Tatu -já ouviu o senhor gargaragem de onça? A garoa rebrilhante da dos-Confins, madrugada quando o céu embranquece - neblim que chamam de xererém. Quem me ensinou a apreciar essas as belezas sem dono foi Diadorim... A da-Raizama, onde até os pássaros calculam o giro da lua - se diz - e cangussú monstra pisa em volta. Lua de com ela se cunhar dinheiro. Quando o senhor sonhar, sonhe com aquilo. Cheiro de campos com flores, forte, em abril: a ciganinha, roxa, e a nhiíca e a escova, amarelinhas... Isto -no Saririnhém. Cigarras dão bando. Debaixo de um tamarindo sombroso... Eh, frio! Lá gêia até em costas de boi, até nos telhados das casas. Ou no Meãomeão - depois dali tem uma terra quase azul. Que não que o céu: esse é céu-azul vivoso, igual um ovo de macuco. Ventos de não deixar se formar orvalho... Um punhado quente de vento, passante entre duas palmas, de palmeira... Lembro, deslembro. Ou - o senhor vai - no soposo: de chuva-chuva. Vê um córrego com má passagem, ou um rio em turvação. No Buriti-Mirim, Angical, Extrema-de-Santa-Maria... Senhor caça? Tem lá mais perdiz do que no Chapadão das Vertentes... Caçar anta no Cabeça-de-Negro ou no Buriti-Comprido - aquelas que comem um capim diferente e roem cascas de muitas outras árvores: a carne de gostosa, diversêia. Por esses longes todos eu passei, com pessoa minha no meu lado, a gente se querendo

grande sertão: veredas 23bem. O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade? Diz-se que tem saudade de idéia e saudade de coração... Ah. Diz-se que o Governo está mandando abrir boa estrada rodageira, de Pirapora a Paracatú, por aí...

Na Serra do Cafundó - ouvir trovão de lá e retrovão, o senhor tapa os ouvidos, pode ser até que chore, de medo mau em ilusão, como quando foi menino. O senhor vê vaca parindo na tempestade... De em de, sempre, Urucúia acima, o Urucúia - tão a brabas vai... Tanta serra, esconde a lua. A serra ali corre torta. A serra faz ponta. Em um lugar, na encosta, brota do chão um vapor de enxofre, com estúrdio barulhão, o gado foge de lá, por pavor. Semelha com as serras do Estrondo e do Roncador -donde dão retumbos, vez em quando. Hem? O senhor? Olhe: o rio Carinhanha é preto, o Paracatú moreno; meu, em belo, é o Urucúia - paz das águas... É vida!... Passado o Porto das Onças, tem um fazendol. Ficamos lá umas semanas, se descansou. Carecia. Porque a gente vinha no, caminhar a pé, para não acabar os cavalos, mazelados. Medeiro Vaz, em lugares assim, fora de guerra, prazer dele era dormir com camisolão e barrete; antes de se deitar, ajoelhava e rezava o terço. Aqueles foram meus dias. Se caçava, cada um esquecia o que queria, de de-comer não faltava, pescar peixe nas veredas... O senhor vá lá, verá. Os lugares sempre estão aí em si, para confirmar.

Muito deleitável. Claráguas, fontes, sombreado e sol. Fazenda Boi-Preto, dum Eleutério Lopes - mais antes do Campo-Azulado, rumo a rumo com o Queimadão. Aí foi em fevereiro ou janeiro, no tempo do pendão do milho. Tresmente: que com o capitão-do-campo de prateadas pontas, viçoso no cerrado; o aniz enfeitando suas moitas; e com florzinhas as dejaniras. Aquele capim-marmelada é muito restível, redobra logo na brotação, tão verde-mar, filho do menor chuvisco. De qualquer pano de mato, de de-entre quase cada encostar de duas folhas, saíam em giro as todas as cores de borboletas. Como não se viu, aqui se vê. Porque, nos gerais, a mesma raça de borboletas, que em outras partes é trivial -regular -cá cresce, vira muito maior, e com mais brilho, se sabe; acho que é do seco do ar, do limpo, desta luz enorme. Beiras nascentes do Urucúia, ali o poví canta altinho. E tinha o xenxém, que tintipiava de manhã no revoredo, o sací-do-brejo, a doidinha, a gangorrinha, o tempo-quente, a rola-vaqueira... e o bem-te-vi que dizia, e araras enrouquecidas. Bom era ouvir o môm das vacas devendo seu leite. Mas, passa-

24 joão guimarães rosa.rinho de bilo no desvéu da madrugada, para toda tristeza que o pensamento da gente quer, ele repergunta e finge resposta. Tal, de tarde, o bento-vieira tresvoava, em vai sobre vem sob, rebicando de vôo todo bichinhozinho de finas asas; pássaro esperto. Ia dechover mais em mais. Tardinha que enche as árvores de cigarras - então, não chove. Assovios que fechavam o dia: o papa-banana, o azulejo, a garricha-do-brejo, o suirirí, o sabiá-ponga, o grunhatá-do-coqueiro... Eu estava todo o tempo quase com Diadorim.

Diadorim e eu, nós dois. A gente dava passeios. Com assim, a gente se diferenciava dos outros - porque jagunço não é muito de conversa continuada nem de amizades estreitas: a bem eles se misturam e desmisturam, de acaso, mas cada um é feito um por si. De nós dois juntos, ninguém nada não falava. Tinham a boa prudência. Dissesse um, caçoasse, digo -podia morrer. Se acostumavam de ver a gente parmente. Que nem mais maldavam. E estávamos conversando, perto do rego -bicame de velha fazenda, onde o agrião dá flor. Desse lusfús, ia escurecendo. Diadorim acendeu um foguinho, eu fui buscar sabugos. Mariposas passavam muitas, por entre as nossas caras, e besouros graúdos esbarravam. Puxava uma bris-brisa. O ianso do vento revinha com o cheiro de alguma chuva perto. E o chiim dos grilos ajuntava o campo, aos quadrados. Por mim, só, de tantas minúcias, não era o capaz de me alembrar, não sou de à parada pouca coisa; mas a saudade me alembra. Que se hoje fosse. Diadorim me pôs o rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza. Sei como sei. Som como os sapos sorumbavam. Diadorim, duro sério, tão bonito, no relume das brasas. Quase que a gente não abria boca; mas era um detém que me tirava para ele -o irremediável extenso da vida. Por mim, não sei que tontura de vexame, com ele calado eu a ele estava obedecendo quieto. Quase que sem menos era assim: a gente chegava num lugar, ele falava para eu sentar; eu sentava. Não gosto de ficar em pé. Então, depois, ele vinha sentava, sua vez. Sempre mediante mais longe. Eu não tinha coragem de mudar para mais perto. Só de mim era que Diadorim às vezes parecia ter um espevito de desconfiança; de mim, que era o amigo! Mas, essa ocasião, ele estava ali, mais vindo, a meia-mão de mim. E eu - mal de não me consentir em nenhum afirmar das docemente coisas que são feias - eu me esquecia de tudo, num espairecer de contentamento, deixava de pensar. Mas

grande sertão veredas 25sucedia uma duvidação, ranço de desgosto: eu versava aquilo em redondos e quadrados. Só que coração meu podia mais. O corpo não traslada, mas muito sabe, adivinha se não entende. Perto de muita água, tudo é feliz. Se escutou, banda do rio, uma lontra por outra: o issilvo de plim, chupante. - "Tá que, mas eu quero que esse dia chegue!" - Diadorim dizia. - "Não posso ter alegria nenhuma, nem minha mera vida mesma, enquanto aqueles dois monstros não forem bem acabados..." E ele suspirava de ódio, como se fosse por amor; mas, no mais, não se alterava. De tão grande, o dele não podia mais ter aumento: parava sendo um ódio sossegado. Ódio com paciência; o senhor sabe?

E, aquilo forte que ele sentia, ia se pegando em mim - mas não como ódio, mais em mim virando tristeza. Enquanto os dois monstros vivessem, simples Diadorim tanto não vivia. Até que viesse a poder vingar o histórico de seu pai, ele tresvariava. Durante que estávamos assim fora de marcha em rota, tempo de descanso, em que eu mais amizade queria, Diadorim só falava nos extremos do assunto. Matar, matar, sangue manda sangue. Assim nós dois esperávamos ali, nas cabeceiras da noite, junto em junto. Calados. Me alembro, ah. Os sapos. Sapo tirava saco de sua voz, vozes de osga, idosas. Eu olhava para a beira do rego. A ramagem toda do agrião - o senhor conhece - às horas dá de si uma luz, nessas escuridões: folha a folha, um fosforém - agrião acende de si, feito eletricidade. E eu tinha medo. Medo em alma.

Não respondi. Não adiantava. Diadorim queria o fim. Para isso a gente estava indo. Com o comando de Medeiro Vaz, dali depois daquele carecido repouso, a gente revirava combate. Munição não faltava. Nós estávamos em sessenta homens - mas todos cabras dos melhores. Chefe nosso, Medeiro Vaz, nunca perdia guerreiro. Medeiro Vaz era homem sobre o sisudo, nos usos formado, não gastava as palavras. Nunca relatava antes o projeto que tivesse, que marchas se ia amanhecer para dar. Também, tudo nele decidia a confiança de obediência. Ossoso, com a nuca enorme, cabeçona meia baixa, ele era dono do dia e da noite - que quase não dormia mais: sempre se levantava no meio das estrelas, percorria o arredor, vagaroso, em passos, calçado com suas boas botas de caititu, tão antigas. Se ele em honrado juízo achasse que estava certo, Medeiro Vaz era solene de guardar o rosário na algibeira, se traçar o

sinal-da-cruz e dar firme ordem para se matar uma a uma as mil pessoas. Desde o começo, eu apreciei aquela fortaleza de outro homem. O segredo dele era de pedra.

Ah, eu estou vivido, repassado. Eu me lembro das coisas, antes delas acontecerem... Com isso minha fama clarêia? Remei vida solta. Sertão: estes seus vazios. O senhor vá. Alguma coisa, ainda encontra. Vaqueiros? Ao antes - a um, ao Chapadão do Urucúia -aonde tanto boi berra... Ou o mais longe: vaqueiros do Brejo-Verde e do Córrego do Quebra-Quináus: cavalo deles conversa cochicho -que se diz -para dar sisado conselho ao cavaleiro, quando não tem mais ninguém perto, capaz de escutar. Creio e não creio. Tem coisa e cousa, e o ó da raposa... Dali para cá, o senhor vem, começos do Carinhanha e do Piratinga filho do Urucúia - que os dois, de dois, se dão as costas. Saem dos mesmos brejos - buritizais enormes. Por lá, sucurí geme. Cada surucuiú do grosso: voa corpo no veado e se enrosca nele, abofa - trinta palmos! Tudo em volta, é um barro colador, que segura até casco de mula, arranca ferradura por ferradura. Com medo de mãe-cobra, se vê muito bicho retardar ponderado, paz de hora de poder água beber, esses escondidos atrás das touceiras de buritirana. Mas o sassafrás dá mato, guardando o poço; o que cheira um bom perfume. Jacaré grita, uma, duas, as três vezes. rouco roncado. Jacaré choca -olhalhão, crespido do lamal, feio mirando na gente. Eh, ele sabe se engordar. Nas lagoas aonde nem um de asas não pousa, por causa de fome de jacaré e da piranha serrafina. Ou outra - lagoa que nem não abre o olho, de tanto junco. Daí longe em longe, os brejos vão virando rios. Buritizal vem com eles, burití se segue, segue. Para trocar de bacia o senhor sobe, por ladeiras de beira-de-mesa, entra de bruto na chapa da, chapadão que não se devolve mais. Água ali nenhuma não tem -só a que o senhor leva. Aquelas chapadas compridas, cheias de mutucas ferroando a gente. Mutucas! Dá o sol, de onda forte, dá que dá, a luz tanta machuca. Os cavalos suavam sal e espuma. Muita vez a gente cumpria por picadas no mato, caminho de anta -a ida da vinda... De noite, se é de ser, o céu embola um brilho. Cabeça da gente quase esbarra nelas. Bonito em muito comparecer, como o céu de estrelas, por meados de fevereiro! Mas, em deslúa, no escuro feito, é um escurão, que pêia e péga. É noite de muito volume. Treva toda do sertão, sempre me fez mal.
Diadorim, não, ele não largava o fogo de gelo
daquela idéia; e nunca se cismava. Mas eu

grande sertão: veredas 27queria que a madrugada viesse. Dia quente, noite fria. Arrancávamos canela-de-ema, para acender fogueira. Se a gente tinha o que comer e beber, eu dormia logo. Sonhava. Só sonho, mal ou bem, livrado. Eu tinha uma lua recolhida. Quando o dia quebrava as barras, eu escutava outros pássaros. Tirirí, graúna, a fariscadeira, juriti-do-peito-branco ou a pomba-vermelha-do-mato-virgem. Mas mais o bem-te-vi. Atrás e adiante de mim, por toda a parte, parecia que era um bem-te-vi só. - "Gente! Não se acha até que ele é sempre um, em mesmo?" - perguntei a Diadorim. Ele não aprovou, e estava incerto de feições. Quando meu amigo ficava assim, eu perdia meu bom sentir. E permaneci duvidando que seria -que era um bem-te-vi, exato, perseguindo minha vida em vez, me acusando de más-horas que eu ainda não tinha procedido. Até hoje é assim...

Dali vindo, visitar convém ao senhor o povoado dos pretos: esses bateavam em faisqueiras - no recesso brenho do Vargem-da-Cria -donde ouro já se tirou. Acho, de baixo quilate. Uns pretos que ainda sabem cantar gabos em sua língua da Costa. E em andemos: jagunço era que perpassava ligeiro: no chapadão, os legítimos coitados todos vivem é demais devagar, pasmacez. A tanta miséria. O chapadão, no pardo, é igual, igual - a muita gente ele entristece; mas eu já nasci gostando dele. As chuvas se temperaram...

Digo: outro mês, outro longe -na Aroeirinha fizemos paragem. Ao que, num portal, vi uma mulher moça, vestida de vermelho, se ria, -"ô Moço da barba feita. .." - ela falou. Na frente da boca, ela quando ria tinha os todos dentes, mostrava em fio. Tão bonita, só. Eu apeei e amarrei o animal num pau da cerca. "Pelo dentro, minhas pernas doíam, por tanto que desses três dias a gente se sustava de custoso varar: circunstância de trinta léguas. Diadorim não estava perto, para me reprovar. De repente, passaram, aos galopes e gritos, uns companheiros, que tocavam um boi preto que iam sangrar e carnear em beira d'água. Eu nem tinha começado a conversar com aquela moça, e a poeira forte que deu no ar ajuntou nós dois, num grosso rojo avermelhado. Então eu entrei, tomei um café coado por mão de mulher, tomei refresco, limonada de pêra-do-campo. Se chamava Nhorinhá. Recebeu meu carinho no cetim do pêlo -alegria que foi, feito casamento, esponsal. Ah. a mangaba boa só se colhe já caída no chão. de baixo... Nhorinhá. Depois ela me deu de presente uma presa de jacaré, para traspassar no chapéu, com talento contra mordi-

28 João guimarães rosada de cobra; e me mostrou para beijar uma estampa de santa, dita meia milagrosa. Muito foi.

Mãe dela chegou, uma velha arregalada, por nome de Ana Duzuza: falada de ser filha de ciganos, e dona adivinhadora da boa ou má sorte da gente; naquele sertão essa dispôs de muita virtude. Ela sabia que a filha era meretriz, e até - contanto que fosse para os homens de fora do lugarejo, jagunços ou tropeiros - não se importava, mesmo dava sua placença. Comemos farinha com rapadura. E a Ana Duzuza me disse, vendendo forte segredo, que Medeiro Vaz ia experimentar passar de banda a banda o liso do Sussuarão. Ela estava chegando do arranchado de Medeiro Vaz, que por ele mandada buscar, ele querendo suas profecias. Loucura duma? Para que? Eu nem não acreditei. Eu sabia que estávamos entortando era para a Serra das Araras - revinhar aquelas corujeiras nos bravios de ali além, aonde tudo quanto era bandido em folga se escondia - lá se podia azo de combinar mais outros variáveis companheiros. Depois, de arte: que o Liso do Sussuarão não concedia passagem a gente viva, era o raso pior havente, era um escampo dos infernos. Se é, se? Ah, existe, meu! Eh... Que nem o Vão-do-Buraco? Ah, não, isto é coisa diversa - por diante da contravertência do Preto e do Pardo... Também onde se forma calor de morte - mas em outras condições... A gente ali rói rampa... Ah, o Tabuleiro? Senhor então conhece? Não, esse ocupa é desde a Vereda-da-Vaca-Preta até o Córrego Catolé, cá em baixo, e de em desde a nascença do Peruassú até o rio Cochá, que tira da Várzea da Ema. Depois dos cerradões das mangabeiras...

Nada, nada vezes, e o demo: esse, Liso do Sussuarão, é o mais longe - pra lá, pra lá, nos ermos. Se emenda com si mesmo. Água, não tem. Crer que quando a gente entesta com aquilo o mundo se acaba: carece de se dar volta, sempre. Um é que dali não avança, espia só o começo, só. Ver o luar alumiando, mãe, e escutar como quantos gritos o vento se sabe sozinho, na cama daqueles desertos. Não tem excrementos. Não tem pássaros.

Com isso, apertei aquela Ana Duzuza, e ela não aguentou a raiva em meus olhos - "Seô Medeiro Vaz, pois f'oi ele mesmo próprio quem me contou..."- ela teve de falar. Soturnos. Não era possível!

Diadorim estava me esperando. Ele tinha lavado minha roupa: duas camisas e um paletó e uma calça, e outra camisa, nova, de bulgariana. Às vezes eu lavava a roupa,

grande sertão: veredas 29nossa; mas quase mais quem fazia isso era Diadorim. Porque eu achava tal serviço o pior de todos, e também Diadorim praticava com mais jeito, mão melhor. Ele não indagou donde eu tinha estado, e eu menti que só tinha entrado lá por causa da velha Ana Duzuza, a fim de requerer o significado do meu futuro. Diadorim também disso não disse; ele gostava de silêncios. Se ele estava com as mangas arregaçadas, eu olhava para os braços dele - tão bonitos braços alvos, em bem feitos, e a cara e as mãos avermelhadas e empoladas, de picadas das mutucas. No momento, foi que eu caí em mim, que podia ter perguntado à Ana Duzuza alguma passagem de minha sina por vir. Também uma coisa, de minha, fechada, eu devia de perguntar. Coisa que nem eu comigo não estudava, não tinha a coragem. E se a Duzuza adivinhasse mesmo, conhecesse por detrás o pano do destino? Não perguntei, não tinha perguntado. Quem sabe, podia ser, eu estava enfeitiçado? Me arrependi de não ter pedido o resumo à Ana Duzuza. Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas - e no meio da travessia não vejo! - só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais em baixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?

Redisse a Diadorim o que eu tinha surripiado: que o projeto de Medeiro Vaz só era o de conduzir a gente para o Liso do Sussuarão - a dentro, adiante, até ao fim. -"E certo é. É certo" - Diadorim respondeu, me afrontando com a surpresa de que ele já sabia daquilo e a mim não tinha antecipado nem miúda palavra. E veja: eu vinha tanto tempo me relutando, contra o querer gostar de Diadorim mais do que, a claro, de um amigo se pertence gostar; e, agora aquela hora, eu não apurava vergonha de se me entender um ciúme amargoso. Sendo sabendo que Medeiro Vaz depunha em Diadorim uma confiança muito maior do que em nós outros todos, de formas que com ele externava os assuntos. Essa diferença de regra agora me turvava? Mas Medeiro Vaz era homem de outras idades, andava por este mundo com mão leal, não variava nunca, não fraquejava. Eu sabia que ele, a bem dizer, só guardava memória de um amigo: Joca Ramiro. Joca Ramiro tinha sido a admiração grave da vida dele: Deus no Céu e Joca Ramiro na outra banda do Rio. Tudo o justo. Mas ciúme é mais custoso de se sopitar do que o amor. Coração da gente - o escuro, escuros.

30 João guimarães rosa

Então, Diadorim o resto me descreveu. Pra por lá do Sussuarão, já em tantos terrenos da Bahia, um dos dois Judas possuía sua maior fazenda, com os muitos gados, lavouras, e lá morava sua família dele legítima de raça - mulher e filhos. A gente suprisse de varar o Liso em boas farsas, se chegava lá sem ser esperados, arrastava aquele pessoal por dura surpresa - acabou-se com aquilo! Mesmo quem havia de deduzir que o Liso do Sussuarão prestasse para nele caminho se impor? Ah, eles prosperavam em sua fazenda feito num quartel de bronze -com que por outros cantos não se podia remeter, pois de arredor decerto tinham vigias, reforço de munição e récua de camaradas, pelos pontos de passagem dificultosa, que eles governavam, em cada grota e cada ipueira. Truco que, de repente, do lado mais impossível, a gente fosse surgir de sobrevento, soflagrar aqueles desprevenidos... Eu escutei, e perfiz até um arrepio. Mas Diadorim, de vez mais sério, temperou: -"Essa velha Ana Duzuza é que inferna e não se serve... Das perguntas que Medeiro Vaz fez, ela tirou por tino atenção dele, e não devia de ter falado as pausas... Essa carece de morrer, para não ser leleira..."

Ouvi mal ouvi. Me vim d'águas frias. Diadorim era assim: matar, se matava - era para ser um preparo. O judas algum? - na faca! Tinha de ser nosso costume. Eu não sabia? Não sou homem de meio-dia com orvalhos, não tenho a fraca natureza. Mas me venceu pena daquela Ana Duzuza, ela com os olhos para fora -a gente podia pegar nos dedos. Coisa que me contou tantas lorotas. Trem, caco de velha, boca que se fechava aboborosa, de sem dentes. Raspava a rapadura com a quicé, ia ajuntando na palma da mão o farelo peguento preto; ou, se não, segurava o naco, rechupando, lambendo. A gente engrossava nojo, salivava. Por que é, então, que ela merecia tanto dó? Eu não tive solércia de contradizer. As vontades de minha pessoa estavam entregues a Diadorim. A razão dele era do estilo acinte. Só previ medo foi de que ele falasse para eu mesmo ir voltar lá, por minhas próprias acabar a Ana Duzuza. Eu não sojigava tudo por sentir. Fazia tempo que eu não olhava Diadorim nos olhos.

Mas, de seguinte, eu pensei: se matarem a velha Duzuza, pelo resguardar o segredo, então é capaz que matem a filha também, Nhorinhá... então é assassinar! Ah, que se puxou de mim uma decisão, e eu abri sete janelas: - "Disso que você disse, desconvenho! Bulir com a vida dessa mulher, para a gente dá atraso..." -eu o quanto falei.

grande sertão: veredas 31Diadorim me adivinhava: -"Já sei que você esteve com a moça filha dela..." - ele respondeu, seco, quase num chio. Dente de cobra. Aí, entendi o que pra verdade: que Diadorim me queria tanto bem, que o ciúme dele por mim também se alteava. Depois dum rebate contente, se atrapalhou em mim aquela outra vergonha, um estúrdio asco.

E eu quase gritei: - "Aí é a intimação? Pois, fizerem, eu saio do meio de vós, pra todo o nunca. Mais tu há de não me ver!..." Diadorim pôs mão em meu braço. Do que me estremeci, de dentro, mas repeli, esses alvoroços de doçura. Me deu a mão; e eu. Mas era como tivesse uma pedra pontuda entre as duas palmas. -"Você já paga tão escasso então por Joca Ramiro? Por conta duma bruxa feiticeira, e a má-vida da filha dela, aqui neste confim de gerais? !" - ele baixo exclamou. E tive ira. -"Dou!" - falei. Todo o mundo, então, todos, tinham de viver honrando a figura daquele, de Joca Ramiro, feito fosse Cristo Nosso Senhor, o exato?! E por aí eu já tinha pitado dois cigarros. Ser dono definito de mim, era o que eu queria, queria. Mas Diadorim sabia disso, parece que não deixava:

-"Riobaldo, escuta, pois então: Joca Ramiro era o meu pai..." - ele disse -não sei se estava pálido muito, e depois foi que se avermelhou. Devido o que, abaixou o rosto, para mais perto de mim.Acalmou meu fôlego. Me cerrou aquela surpresa. Sentei em cima de nada. E eu cri tão certo, depressa, que foi como sempre eu tivesse sabido aquilo. Menos disse. Espiei Diadorim, a dura cabeça levantada, tão bonito tão sério. E corri lembrança em Joca Ramiro: porte luzido, passo ligeiro, as botas russianas, à risada, os bigodes, o olhar bom e mandante, a testa muita, o topete de cabelos anelados, pretos, brilhando. Como que brilhava ele todo. Porque Joca Ramiro era mesmo assim sobre os homens, ele tinha uma luz, rei da natureza. Que Diadorim fosse o filho, agora de vez me alegrava, me assustava. Vontade minha foi declarar: - Redigo, Diadorim: estou com você, assente, em todo sistema, e com a memória de seu pai!... Mas foi o que eu não disse. Será por quê? Criatura gente é não e questão, corda de três tentos, três tranços. -"Pois, para mim, pra quem ouvir, no fato essa Ana Duzuza fica sendo minha mãe!" - foi o que eu disse. E, fechando, quase gritei: -"Por mim, pode cheirar que chegue o manacá: não vou! Reajo dessas barbaridades!..."

Tudo turbulindo. Esperei o que vinha dele. De um aceso, de mim eu sabia: o que compunha minha opinião

32 joão guimarães rosaera que eu, às loucas, gostasse de Diadorim, e também, recesso dum modo, a raiva incerta, por ponto de não ser possível dele gostar como queria, no honrado e no final. Ouvido meu retorcia a voz dele. Que mesmo, no fim de tanta exaltação, meu amor inchou, de empapar rodas as folhagens, e eu ambicionando de pegar em Diadorim, carregar Diadorim nos meus braços, beijar, as muitas demais vezes, sempre. E tinha nojo maior daquela Ana Duzuza, que vinha talvez separar a amizade da gente. Em mesmo eu quase reconheci um surdo prestígio de, sendo preciso, ir lá, por mim, reduzir a velha - só não podia maltratar era Nhorinhá, que, ao tanto afeto, eu, eu bem-queria. Há-de que eu certo não regulasse, ôxe? Não sei, não sei - Não devia de estar relembrando Isto, contando assim o sombrio das coisas. Lenga-lenga! Não devia de. O senhor, é de fora, meu amigo mas meu estranho. Mas, talvez por isto mesmo. Falar com o estranho assim, que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. Para isso é que o muito se fala?

E as idéias instruídas do senhor me fornecem paz. Principalmente a confirmação, que me deu, de que o Tal não existe; pois é não? O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Ganho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem - Gracejos... Pois, não existe! E se não existe, como é que se pode se contratar pacto com ele? E a idéia me retoma. Dum mau imaginado, o senhor me dê o lícito: que, ou então - será que pode também ser que tudo é mais passa- do revolvido remoto, no profundo, mais crônico: que, quando um tem noção de resolver a vender a alma sua, que é porque ela já estava dada vendida, sem se saber e a pessoa sujeita está só é certificando o regular dalgum velho trato - que já se vendeu aos poucos, faz tempo? Deus não queira; Deus que roda tudo! Diga o senhor, sobre mim diga. Até podendo ser, de alguém algum dia ouvir e entender assim: quem-sabe, a gente criatura ainda é tão ruim, tão, que Deus só pode às vezes manobrar com os homens é mandando por intermédio do diá? Ou que Deus - quando o projeto que ele começa é para muito adiante, a ruindade nativa do homem só é capaz dever o aproximo de Deus é em figura do Outro? Que é que

grande sertão: veredas 33de verdade a gente pressente? Dúvido dez anos. Os pobres ventos no burro da noite. Deixa o mundo dar seus giros! Estou de costas guardadas, a poder de minhas rezas. Ahã. Deamar, deamo... Relembro Diadorim. Minha mulher que não me ouça. Moço: roda saudade é uma espécie de velhice.

Mas aí, eu estava contando - quando eu gritei aquele desafio raivoso, Diadorim respondeu o que eu não esperava: - "Tem discórdia não, Riobaldo amigo, se acalme. Não é preciso se haver cautela de morte com essa Ana Duzuza. Nem nós vamos com Medeiro Vaz para fazer barbaridade com a mulher e filhos pequenos daquele pior dos dois Judas, tão bem que mereciam, porque ele e os da laia dele têm costumes de proceder assim. Mas o que a gente quer é só pegar a família conosco prisioneira; então, ele vem, se vem! E vem obrigado pra combates... Mas, se você algum dia deixar de vir junto, como juro o seguinte: hei de ter a tristeza mortal..." Disse. Tinha tornado a pôr a mão na minha mão, no começo de falar, e que depois tirou; e se espaçou de mim. Mas nunca eu senti que ele estivesse melhor e perto, pelo quanto da voz, duma voz mesmo repassada. Coração - isto é, estes pormenores todos. Foi um esclaro. O amor, já de si, é algum arrependimento. Abracei Diadorim, como as asas de todos os pássaros. Pelo nome de seu pai, Joca Ramiro, eu agora matava e morria, se bem.

Mas Diadorim mais não supriu o que mais não explicava. E, quem sabe para deduzir da conversa, me perguntou: -"Riobaldo, se lembra certo da senhora sua mãe? Me conta o jeito de bondade que era a dela..."

Na ação de ouvir, digo ao senhor, tive um menos gosto, na ação da pergunta. Só faço, que refugo, sempre quando outro quer direto saber o que é próprio o meu no meu, ah. Mas desci disso, o minuto, vendo que só mesmo Diadorim era que podia acertar esse tento, em sua amizade delicadeza. Ao que entendi. Assim devia de ser. Toda mãe vive de boa, mas cada uma cumpre sua paga prenda singular, que é a dela e dela, diversa bondade. E eu nunca tinha pensado nessa ordem. Para mim, minha mãe era a minha mãe, essas coisas. Agora, eu achava. A bondade especial de minha mãe tinha sido a de amor constando com a justiça, que eu menino precisava. E a de, mesmo no punir meus demaseios, querer-bem às minhas alegrias. A lembrança dela me fantasiou, fraseou - só face dum momento -feito grandeza cantável, feito entre madrugar e manhecer.

- "...Pois a minha eu não conheci... " - Diadorim prosseguiu no dizer. E disse com curteza simples, igual

34 joão guimarães rosaquisesse falar: barra -beiras -cabeceiras... Fosse cego, de nascença.

Por mim, o que pensei, foi: que eu não tive pai; quer dizer isso, pois nem eu nunca soube autorizado o nome dele. Não me envergonho, por ser de escuro nascimento. Órfão de conhecença e de papéis legais, é o que a gente vê mais, nestes sertões. Homem viaja, arrancha, passa: muda de lugar e de mulher, algum filho é o perdurado. Quem é pobre, pouco se apega, é um giro-o-giro no vago dos gerais, que nem os pássaros de rios e lagoas. O senhor vê: o Zé-Zim, o melhor meeiro meu aqui, risonho e habilidoso. Pergunto: -"Zé-Zim, por que é que você não cria galinhas-d'angola, como todo o mundo faz?" "- Quero criar nada não..." - me deu resposta: -"Eu gosto muito de mudar. .." Está aí, está com uma mocinha cabocla em casa, dois filhos dela já tem. Belo um dia, ele tora. É assim. Ninguém discrepa. Eu, tantas, mesmo digo. Eu dou proteção. Eu, isto é - Deus, por baixos permeios... Essa não faltou também à minha mãe, quando eu era menino, no sertãozinho de minha terra - baixo da ponta da Serra das Maravilhas, no entre essa e a Serra dos Alegres, tapera dum sítio dito do Caramujo, atrás das fontes do Verde, o Verde, que verte no Paracatú. Perto de lá tem vila grande - que se chamou Alegres -o senhor vá ver. Hoje, mudou de nome, mudaram. Todos os nomes eles vão alterando. É em senhas. São Romão todo não se chamou de primeiro Vila Risonha? O Cedro e o Bagre não perderam o ser? O Tabuleiro -Grande? Como é que podem remover uns nomes assim? O senhor concorda? Nome de lugar onde alguém já nasceu, devia de estar sagrado. Lá como quem diz: então alguém havia de renegar o nome de Belém - de Nosso-Senhor-Jesus-Cristo no presépio, com Nossa Senhora e São José?! Precisava de se ter mais travação. Senhor sabe: Deus é definitivamente; o demo é o contrário Dele... Assim é que digo: eu, que o senhor já viu que tenho retentiva que não falta, recordo tudo da minha meninice. Boa, foi. Me lembro dela com agrado; mas sem saudade. Porque logo sufusa uma aragem dos acasos. Para trás, não há paz. O senhor sabe: a coisa mais alonjada de minha primeira meninice, que eu acho na memória, foi o ódio, que eu tive de um homem chamado Gramacêdo... Gente melhor do lugar eram todos dessa família Guedes, Jidião Guedes; quando saíram de lá nos trouxeram junto, minha mãe e eu. Ficamos existindo em território baixío da Sirga, da outra banda, ali onde de - Janeiro vai no São Francisco, o senhor sabe. Eu estava com uns treze ou quatorze anos...

grande sertão: veredas 35

De sorte que, do que eu estava contando, ao senhor, uma noite se passou, todo o mundo sonhado satisfeito. Declaro que era em abril, em entrar. Medeiro Vaz, para o que traçava, tinha querido se adiar das restadas chuvas de março -dia de São José e sua enchente temposa - para pegar céu perfeito, com os campos ainda subindo verdes, pois visto a gente ia baixar primeiro por campinas de brejais, e daí avançar aquilo que se disse, dêpo-depois. Porque era extraordinária verdade, logo conheci; não achei terrível. Tangemos, esbarrando dois dias no Vespê - lá se tinha boa cavalaria descansada, outros cavalos sob guarda dum sitiante amigo, Jõe Engrácio, por nome.Nos caminhos ainda se lambuzava muita lama de ontem. -"Versar viagem a cavalo sem ter estradas -só dôido é quem faz isso, ou jagunz..."- aquele Jõe Engrácio falou, esse era homem sério trabalhador, mas demais de simplório; e, do que ele falava, ele mesmo logo se ria, fortemente. Mas erro era - porquanto Medeiro Vaz sempre soube rumo prático, pelo firme. Modo mesmo assim, ele Jõe Engrácio reparou na quantidade de comidas e mantimentos que a gente tinha reunido, em tantos burros cargueiros: e que era despropósito, por amor daquela fartura -as carnes e farinhas, e rapadura, nem faltava sal, nem café. De tudo. E ele, vendo o que via, perguntou aonde se ia, dando dizendo de querer ir junto. -"Bobou?" - foi só o que Medeiro Vaz indeferiu. -"Bobei, chefe. Perdão peço..." - Jõe Engrácio reverenciou.

Medeiro Vaz não era carrancista. Somente de mais sisudez, a praxe, homem baseado. Às vezes vinha falando surdo, de resmão. Com ele, ninguém vereava. De estado calado, ele sempre aceitava todo bom e justo conselho. Mas não louvava cantoria. Estavam falando todos juntos? Então Medeiro Vaz não estava lá. O que tinha sido antanha a história mesma dele, o senhor sabe? Quando Moço, de antepassados de posses, ele recebera grande fazenda. Podia gerir e ficar estadonho. Mas vieram as guerras e os desmandos de jagunços -tudo era morte e roubo, e desrespeito carnal das mulheres casadas e donzelas, foi impossível qualquer sossego, desde em quando aquele imundo de loucura subiu as serras e se espraiou nos gerais. Então Medeiro Vaz, ao fim de forte pensar, reconheceu o dever dele: largou tudo, se desfez do que abarcava, em terras e gados, se livrou leve como que quisesse voltar a seu só nascimento. Não tinha bocas de pessoa, não sustinha herdeiros forçados. No derradeiro, fez o fez - por suas mãos pôs fogo na distinta casa-de-fazenda, fazendão sido de pai,

36 joão guimarães rosaavô, bisavô - espiou até o voêjo das cinzas; lá hoje é arvoredos. Ao que, aí foi aonde a mãe estava enterrada - um cemiteriozinho em beira do cerrado - então desmanchou cerca, espalhou as pedras: pronto, de alívios agora se testava, ninguém podia descobrir, para remexer com desonra, o lugar onde se conseguiam os ossos dos parentes. Dai, relimpo de tudo, escorrido dono de si, ele montou em ginete, com cachos d'armas, reuniu chusma de gente corajada, rapaziagem dos campos, e saíu por esse rumo em roda, para impor a justiça. De anos, andava. Dizem que foi ficando cada vez mais esquisito. Quando conheceu Joça Ramiro, então achou outra esperança maior: para ele, Joca Ramiro era único homem, par-de-frança, capaz de tomar conta deste sertão nosso, mandando por lei, de sobregovêrno. Fato que Joca Ramiro também igualmente saía por justiça e alta política, mas só em favor de amigos perseguidos; e sempre conservava seus bons haveres. Mas Medeiro Vaz era duma raça de homem que o senhor mais não vê; eu ainda vi. Ele tinha conspeito tão forte, que perto dele até o doutor, o padre e o rico, se compunham. Podia abençoar ou amaldiçoar, e homem mais Moço, por valente que fosse, de beijar a mão dele não se vexava. Por isso, nós todos obedecíamos. Cumpríamos choro e riso, doideira em juízo. Tenente nos gerais -ele era. A gente era os medeiro-vazes.

Razão dita, de boa-cara se aceitou, quando conforme, Medeiro Vaz com as poucas palavras: que íamos cruzar o Liso do Sussuarão, e cutucar de guerrear nos fundões da Bahia! Até, o tanto, houve, prezando, um rebuliço de festejo. O que ninguém ainda não tinha feito, a gente se sentia no poder fazer. Como fomos: dali do Vespê, tocamos, descendo esbarrancados e escorregador. Depois subimos. A parte de mais árvores, dos cerrados, cresce no se caminhar para as cabeceiras. Boi brabeza pode surgir do caatingal, tresfuriado com o que de gente nunca soube - vem feio pior que onça. Se viam bandos tão compridos de araras, no ar, que pareciam um pano azul ou vermelho, desenrolado, esfiapado, nos lombos do vento quente. Daí, se desceu mais, e, de repente, chegamos numa baixada roda avistada, felizinha de aprazível, com uma lagoa muito correta, rodeada de buritizal dos mais altos: buriti-verde que afina e esveste, belimbeleza. E tinha os restos de uma casa, que o tempo viera destruindo; e um bambual, por antigos plantado; e um ranchinho. Ali se chamava o Bambual do Boi. Lá a gente seria de pernoitar e arrumar os finais preparos.

grande sertão: veredas 37

Eu estava de sentinela, afastado um quarto-de-légua, num alto retuso. Dali eu via aquele movimento: os homens, enxergados tamanhinho de meninos, numa alegria, feito nuvem de abelhas em flor de araçá, esse alvoroço, como tirando roupa e correndo para aproveitarem de se banhar no redondo azul da lagoa, de donde fugiam espantados todos os pássaros - as garças, os jaburus, os marrecos, e uns bandos de patos-pretos. Semelhava que por saberem que no outro dia principiava o peso da vida, os companheiros agora queriam só pular, rir e gozar seu exato. Mas uns dez tinham de sempre ficar formando prontidão, com seus rifles e granadeiras, que Medeiro Vaz assim mandava. E, de tardinha, quando voltou o vento, era um fino soprado seguido, nas palmas dos buritis, roladas uma por uma. E o bambual, quase igualmente. Som bom de chuvas. Então, Diadorim veio me fazer companhia. Eu estava meio dúbito. Talvez, quem tivesse mais receio daquilo - que ia acontecer fosse eu mesmo. Confesso. Eu cá não madruguei em ser corajoso; isto é: coragem em mim era variável. Ah, naqueles tempos eu não sabia, hoje é que sei: que, para a gente se transformar em ruim ou em valentão, ah "-basta se olhar um minutinho no espelho - caprichando de fazer cara de valentia; ou cara de ruindade! Mas minha competência foi comprada a todos custos, caminhou com os pés da idade. E, digo ao senhor, aquilo mesmo que a gente receia de fazer quando Deus manda, depois quando o diabo pede se perfaz. O Danador! Mas Diadorim estava a suaves. - "Olha, Riobaldo" - me disse -"nossa destinação é de glória. Em hora de desânimo, você lembra de sua mãe; eu lembro de meu pai..." Não fale nesses, Diadorim... Ficar calado é que é falar nos mortos... Me faltou certeza para responder a ele o que eu estava achando. Que vontade era de pôr meus dedos, de leve, o leve, nos meigos olhos dele, ocultando, para não ter de tolerar de ver assim o chamado, até que ponto esses olhos, sempre havendo, aquela beleza verde, me adoecido, tão impossível.

Dormiu-se bem. De manhãzim - moal de aves e pássaros em revôo, e pios e cantos - a gente roda discorria, se esparramava, atarefados, ajudando para o derradeiro. Os bogós de couro foram enchidos nas nascentes da lagoa, e enqueridos nas costas dos burrinhos. Também tínhamos trazido jumentos, só modo para carregar. Os cavalos ainda pastavam um pouco, do capim-grama, que tapava os pés deles. Se dizia muita alegria. Cada um pegava também sua cabaça d'água, e na capanga o diário de se valer com o que

38 joão guimarães rosacomer - paçoca. Medeiro Vaz, depois de não dizer nada, deu ordem de seguida. Primeiro, para adiante, foi uma turma de cinco homens, a patrulhazinha. Constante que com a gente estavam três bons rastreadores - Suzarte. Joaquim Beijú e Tipote - esse Tipote sabia meios de descobrir cacimbas e grotas com o bebível, o Suzarte desempenhava um faro de cachorro - mestre, e Joaquim Beijú conhecia cada recanto dos gerais, de dia e de noite, referido deletreado, quisesse podia mapear planta. Saímos, semoventes. Seis novilhos gordos a gente repontava, serviam para se carnear em rota. De repente, com a gente se afastando, os pássaros todos voltavam do céu, que desciam para seus lugares" em ponto, nas frescas beiras da lagoa - ah, a papeagem no buritizal, que leque-lequêia. A ver, e o sol, em pulo de avanço, longe na banda de trás, por cima de matos, rebentava, aquela grandidade. Dia desdobrado.

Em o que afundamos num cerrado de mangabal, indo sem volvência, até perto de hora do almoço. Mas o terreno aumentava de soltado. E as árvores iam se abaixando menorzinhas, arregaçavam saia no chão. De vir lá, só algum tatú, por mel e mangaba. Depois, se acabavam as mangabaranas e mangabeirinhas. Ali onde o campo larguêia. Os urubús em vasto espaceavam. Se acabou o capinzal de capim-redondo e paspalho, e paus espinhosos, que mesmo as moitas daquele de prateados feixes, capins assins. Acabava o grameal, naquelas paragens pardas. Aquilo, vindo aos poucos, dava um peso extrato, o mundo se envelhecendo, no descampante. Acabou o sapé brabo do chapadão. A gente olhava para trás. Daí, o sol não deixava olhar rumo nenhum. Vi a luz, castigo. Um gavião-andorim: foi o fim de pássaro que a gente divulgou. Achante, pois, se estava naquela coisa -taperão de tudo, fofo ocado, arrevesso. Era uma terra diferente, louca, e lagoa de areia. Onde é que seria o sobejo dela, confinante? O sol vertia no chão, com sal, esfaiscava. De longe vez, capins mortos; e uns tufos de seca planta - feito cabeleira sem cabeça. As-exalastrava a distância, adiante, um amarelo vapor. E fogo começou a entrar, com o ar, nos pobres peitos da gente.

Exponho ao senhor que o sucedido sofrimento sobrefoi já, inteirado no começo; daí só mais aumentava. E o que era para ser... O que é pra ser - são as palavras! Ah, porque. Por que? Juro que: pontual nos instantes de o raso se pisar, um sujeito dos companheiros, um João Bugre, me disse, ou disse a outro, do meu lado:

grande sertão: veredas 39

- "... o Hermógenes tem pauta... te se quis com o Capiroto..."

Eu ouvi aquilo demais. O pacto! Se diz - o senhor sabe. Bobéia. Ao que a pessoa vai, em meia-noite, a uma encruzilhada, e chama fortemente o Cujo - e espera. Se sendo, há-de que vem um pé-de-vento, sem razão, e arre se comparece uma porca com ninhada de pintos, se não for uma galinha puxando barrigada de leitões. Tudo errado, remedante, sem completação... O senhor imaginalmente percebe? O crespo -a gente se retém - então dá um cheiro de breu queimado. E o dito - o Coxo - toma espécie, se forma! Carece de se conservar coragem. Se assina o pacto. Se assina com sangue de pessoa. O pagar é a alma. Muito mais depois. O senhor vê, superstição parva? Estornada!... "0 Hermógenes tem pautas..." Provei. Introduzi. Com ele ninguém podia? O Hermógenes - demônio. Sim só isto. Era ele mesmo.

A gente viemos do inferno - nós todos -compadre meu Quelemém instrui. Duns lugares inferiores, tão monstro-medonhos, que Cristo mesmo lá só conseguiu aprofundar por um relance a graça de sua sustância alumiável, em as trevas de véspera para o Terceiro Dia. Senhor quer crer? Que lá o prazer trivial de cada um é judiar dos outros, bom atormentar; e o calor e o frio mais perseguem; e, para digerir o que se come, é preciso de esforçar no meio, com fortes dores; e até respirar custa dor; e nenhum sossego não se tem. Se creio? Acho proseável. Repenso no acampo da Macaúba da Jaíba, soante que mesmo vi e assaz me contaram; e outros - as ruindades de regra que executavam em tantos pobrezinhos arraiais: baleando, esfaqueando, estripando, furando os olhos, cortando línguas e orelhas, não economizando as crianças < pequenas, atirando na inocência do gado, queimando pessoas ainda meio vivas, na beira de estrago de sangues... Esses não vieram do inferno? Saudações. Se vê que subiram de lá antes dos prazos, figuro que por empreitada de punir os outros, exemplação de nunca se esquecer do que está reinando por debaixo. Em tanto, que muitos retombam para lá, constante que morrem... Viver é muito perigoso.

Mas mor o infernal a gente também media. Digo. A igual, igualmente. As chuvas já estavam esquecidas, e o miolo mal do sertão residia ali, era um sol em vazios. A gente progredia dumas poucas braças, e calcava o reafundo do areião - areia que escapulia, sem firmeza, puxando os cascos dos cavalos para trás. Depois, se repraçava um en-

40 João guimarães rosatranço de vice-versa, com espinhos e restolho de graviá, de áspera raça, verde-preto cor de cobra. Caminho não se havendo. Daí, trasla um duro chão rosado ou cinzento, gretoso e escabro - no desentender aquilo os cavalos arupanavam. Diadorim - sempre em prumo a cabeça -o sorriso dele me dobrava o ansiar. Como que falasse: "Hê, valentes somos, corruscubas, sobre ninguém -que vamos padecer e morrer por aqui..." Os medeiro-vazes... Medeiro Vaz se estugasse adiante, junto com os que rastreavam? Será que de lá ainda se podia receder? De devagar, vi visagens. Os companheiros se prosseguindo, só prosseguindo, receei de ter um vágado - como tonteira de truaca. Havia eu de saber por que? Acho que provinha de excessos de idéia, pois caminhadas piores eu já tinha feito, a cavalo ou a pé, no tosta-sol. Medo, meu medo. Aguentei. Tanto tudo o que eu carregava comigo me pesava - eu ressentia as correias dos corre ames, os formatos. A com légua-e-meia de andada, bebi meu primeiro chupo d'água, da cabaça - eu tinha avarezas dela. Alguma justa noção não emendei, eu pensava desconjuntado. Até que esbarramos. Até que, no mesmo padrão de lugar, sem mudança nenhuma, nenhuma árvore nem barranco, nem nada, se viu o sol de um lado deslizar, e a noite armar do outro. Nem auxiliei a tomar conta dos bois, nem a destravar os burros de albarda. Onde era que os animais iam poder pastar? Noite redondeou, noite sem boca. Desarreei, peei o animal, caí e dormi. Mas, no extremo de adormecer, ainda intrují duas coisas, em cruz: que Medeiro Vaz estava in- sensato? - e que o Hermógenes era pactário! Tomo que essas traves fecharam meus olhos. De Diadorim, aí jaz que descansando do meu lado, assim ouvi: -"Pois dorme, Riobaldo, tudo há-de resultar bem..." Antes palavras que picaram em mim uma gastura cansada; mas a voz dele era o tanto-tanto para o embabo de meu corpo. Noite essa, astúcia que tive uma sonhice: Diadorim passando por debaixo de um arco-íris. Ah, eu pudesse mesmo gostar dele - os gostares...

Como vou achar ordem para dizer ao senhor à continuação do martírio, em desde que as barras quebraram, no seguinte, na brumalva daquele falecido amanhecer, sem esperança em uma, sem o simples de passarinhos faltantes? Fomos. Eu abaixava os olhos, para não reter os horizontes, que trancados não alteravam, circunstavam. Do sol e tudo, o senhor pode completar, imaginado; o que não pode, para o senhor, é ter sido, vivido. Só saiba: o Liso do Sussuarão

grande sertão: veredas 41concebia silêncio, e produzia uma maldade -feito pessoa! Não destruí aqueles pensamentos: ir, e ir, vir -e só; e que Medeiro Vaz estava demente, sempre existido doidante, só agora pior, se destapava - era o que eu tinha rompência de gritar. E os outros, companheiros, que é que os outros pensavam? Sei? De certo nadas e noves - iam como o costume - sertanejos tão sofridos. Jagunço é homem já meio desistido por si... A calamidade de quente! E o esbraseado, o estufo, a dor do calor em todos os corpos que a gente tem. Os cavalos venteando - só se ouvia o resfol deles, cavalanços, e o trabalho custoso de suas passadas. Nem menos sinal de sombra. Água não havia. Capim não havia. A debeber os cavalos em cocho armado de couro, e dosar a meio, eles esticando os pescoços para pedir, eles olhavam como para seus cascos, mostrando tudo o que cangavam de esforço, e cada restar de bebida carecia de ser poupado. Se ia, o pesadelo. Pesadelo mesmo, de delírios. Os cavalos gemiam descrença. Já pouco forneciam. E nós estávamos perdidos. Nenhum poço não se achava. Aquela gente toda sapirava de olhos vermelhos, arroxeavam as caras. A luz assassinava demais. E a gente dava voltas, os rastreadores farejando, procurando. Já tinha quem beijava os bentinhos, se rezava. De mim, entreguei alma no corpo,debruçado para a sela, numa quebreira. Até minhas testas formaram de chumbo. Valentia vale em todas horas? Repensei coisas de cabeça-branca. Ou eu variava? A saudade que me dependeu foi de Otacília. Moça que dava amor por mim, existia nas Serras dos Gerais - Buritis Altos, cabeceira de vereda - na Fazenda Santa Catarina. Me airei nela, como a diguice duma música, outra água eu provava. Otacília:, ela queria viver ou morrer comigo - que a gente, se casasse. Saudade se susteve curta. Desde uns versos:

Burití, minha palmeira,
lá na vereda de lá:
casinha da banda esquerda,
olhos de onda do mar...

Mas os olhos verdes sendo os de Diadorim. Meu amor de prata e meu amor de ouro: De doer, minhas vistas bestavam, se embaçavam de renúvem, e não achei acabar para olhar para o céu. Tive pena do pescoço do meu cavalo - pedação, tábua suante, padecente. Voltar para trás, para as boas serras! Eu via, queria ver, antes de dar à casca, um pássaro voando sem movimento, o chão fresco remexido pela fossura duma anta, o cabecear das árvores, o riso do

42 João guimarães rosa

ar e o fogo feito duma arara. O senhor sabe o que é o frege dum vento, sem uma moita, um pé de parede pra ele se retrasar? Diadorim não se apartou do meu lado. Caso que arredondava a testa, pensando. Adivinhou que eu roçava longe dele em meus pensamentos... Riobaldo, não se matou a Ana Duzuza... Nada de reprovável não se fez..." - falou. E eu não respondendo. Agora, o que era que aquilo me importava - de malfeitos e castigos? Eu ambicionava o suíxo manso dum córrego nas lajes - o bom sumiço dum riacho mato a fundo. E adverti memória dos derradeiros pássaros do Bambual do Boi. Aqueles pássaros faziam arejo. Gritavam contra a gente, cada um asia sua sombra num palmo vivo d'água. O melhor de tudo é a água. No escaldado... Saio daqui com vida, deserteio de jaguncismo, vou e me caso com Otacília" - eu jurei, do proposto de meus todos sofrimentos. Mas mesmo depois, naquela hora, eu não gostava mais de ninguém: só gostava de mim, de mim! Novo que eu estava no velho do inferno. Dia da gente desexistir é um certo decreto -por isso que ainda hoje o senhor aqui me vê. Ah, e os poços não se achavam... Alguém já tinha declarado de morto. O Miquím, um rapaz sério sincero, que muito valia em guerreio, esbarrou e se riu: -"Será que não é sorte?" Depois, se sofreu o grito de um, adiante: -"Estou cego!. .." Mais aquele, o do pior - caíu total, virado torto; embaraçando os passos das montadas, De repente, um rosnou, reclamou baixo. Outro também. Os cavalos bobejavam. Vi uma roda de caras de homens. Suas as caras. Credo como algum - até as orelhas dele estavam cinzentas. E outro: todo empretecido, e sangrava das capelas e papos-dos-olhos. Medeiro Vaz a nada não atendia? Ouvi minhas veias. Aí, a rumo, eu pude pegar a rédea do animal de Diadorim -aquelas peças doeram na minha mão -tive que fiquei um instante no inclinado. "Daqui, deste mesmo de lugar, mais não Viu! Só desarrastado vencido..." -mas falei. Diadorim pareceu em pedra, cão que olha. Contanto me mirou a firme, com aquela beleza que nada mudava. -"Pois vamos retornar, Riobaldo... Que vejo que nada campou viável..." "Tal tempo!" -truquei, mais forte, rouco como um guariba. Foi aí que o cavalo de Diadorim afundou aberto, espalhado no chão, e se agoniou. Eu apeei do meu. Medeiro Vaz estava ali, num aspeito repartido. Pessoal companheiro, em redor, se Engasgavam, pelo o resultado. -"Nós temos de voltar, chefe?" - Diadorim
solicitou. Acabou de falar, e parou um gesto, para,
nós a gente sofreasse. Tom bom; mas se via que
Medeiro Vaz não podia outro querer, a não

grande sertão: veredas 43ser o que Diadorim perguntava. Medeiro Vaz, então - por primeira vez - abriu dos lados as mãos, de nada não poder fazer; e ele esteve de ombros rebaixados. Mais não vi, e entendi. Peguei minha cabaça, bebi gole, amargo de felém. Mas era mesmo o final de se voltar, Deus me disse. E - o senhor mais saiba - de supeto já eu estava remoçado, são, disposto! Todos influídos assim. Pra trás, sempre dá o prazer. Diadorim apalpou meu braço. Vi: os olhos dele marejados. Mor que depois eu soube - que, a idéia de se atravessar o Liso do Sussuarão, ele Diadorim era que a Medeiro Vaz tinha aconselhado.

Mas, para que contar ao senhor, no tinte, o mais que se mereceu? Basta o vulto ligeiro de tudo. Como Deus foi servido, de lá, do estralal do sol, pudemos sair, sem maiores estragos. Isto é, uns homens mortos, e mais muitos dos cavalos. Mesmo o mais grave sido que restamos sem os burros, fugidos por infelizes, e a carga quase toda, toda, com os mantimentos, a gente perdemos. Só não acabamos sumidos dextraviados, por meio do regular das estrelas. E foi. Saímos dali, num pintar de aurora. E em lugares deerrados. Mais não se podia. Céu alto e o adiado da lua. Com outros nossos padecimentos, os homens tramavam zuretados de fome - caça não achávamos - até que tombaram à bala um macaco vultoso, destrincharam, quartearam e estavam comendo. Provei. Diadorim não chegou aprovar. Por quanto -juro ao senhor -enquanto estavam ainda mais assando, e manducando, se soube, o corpudo não era bugio não, não achavam o rabo. Era homem humano, morador, um chamado José dos Alves! Mãe dele veio de aviso, chorando e explicando: era criaturo de Deus, que nu por falta de roupa... Isto é, tanto não, pois ela mesma ainda estava vestida com uns trapos; mas o filho também escapulia assim pelos matos, por da cabeça prejudicado. Foi assombro. A mulher, fincada de joelhos, invocava. Algum disse: -"Agora, que está bem falecido, se come o que alma não é, modo de não morrermos todos..." Não se achou graça. Não, mais não comeram, não puderam. Para acompanhar, nem farinha não tinham. E eu lancei. Outros também vomitavam. A mulher rogava. Medeiro Vaz se prostrou, com febre, diversos perrengavam. -"Aí, então, é a fome?" - uns xingavam. Mas outros conseguiram da mulher informação: que tinha, obra de quarto-de-légua de lá, um mandiocal sobrado. -"Arre que não!" - ouvi gritarem: que, de certo, por vingança, a mulher ensinasse aquilo, de ser mandioca-brava! Esses olhavam com terrível raiva. Nesse

44 João guimarães rosatempo, o Jacaré pegou de uma terra, qualidade que dizem que é de bom aproveitar, e gostosa. Me deu, comi, sem achar sabor, só o pepego esquisito, e enganava o estômago. Melhor engulir capins e folhas. Mas uns já enchiam até capanga, com torrão daquela terra. Diadorim comeu. A mulher também aceitou, a coitada. Depois Medeiro Vaz passou mal, outros tinham dores, pensaram que carne de gente envenenava. Muitos estavam doentes, sangrando nas gengivas, e com manchas vermelhas no corpo, e danado doer nas pernas, inchadas. Eu cumpria uma disenteria, garrava a ter nojo de mim no meio dos outros. Mas pudemos chegar até na beira do dos-Bois, e na Lagoa Sussuarana, ali se pescou. Nós trouxemos aquela mulher, o tempo todo, ela temia de que faltasse outro de-comer, e ela servisse. - "Quem quiser bulir com ela, que me venha!" -Diadorim garantiu. -"Que só venha!" - eu secundei, do lado dele. Matou-se capivara gorda, por fim. Dum geralista roto, ganhamos farinha-de-burití, sempre ajudava. E seguimos o corgo que tira da Lagoa Sussuarana, e que recebe o do Jenipapo e a Vereda-do-Vitorino, e que verte no Rio Pandeiros -esse tem cachoeiras que cantam, e é d'água tão tinto, que papagaio voa por cima e gritam, sem acordo: - É verde! É azul! É verde! É verde!... E longe pedra velha remeleja, vi. Santas águas, de vizinhas. E era bonito, no correr do baixo campo, as flores do capitão-da-sala - todas vermelhas e alaranjadas, rebrilhando estremeci das, de reflexo. -"É o cavalheiro-da-sala..." -Diadorim falou, entusiasmado. Mas o Alaripe, perto de nós, sacudiu a cabeça. -"Em minha terra, o nome dessa" -ele disse -"é dona-joana.., Mas o leite dela é venenoso. .."

Esbandalhados nós estávamos, escatimados naquela esfrega. Esmorecidos é que não. Nenhum se lastimava, filhos do dia, acho mesmo que ninguém se dizia de dar por assim. Jagunço é isso. Jagunço não se escabrêia com perda nem derrota -quase que tudo para ele é o igual. Nunca vi. Pra ele a vida já está assentada: comer, beber, apreciar mulher, brigar, e o fim final. E todo o mundo não presume assim? Fazendeiro, também? Querem é trovão em outubro e a tulha cheia de arroz. Tudo que eu mesmo, do que mal houve, me esquecia. Tornava a ter fé na clareza de Medeiro Vaz, não desfazia mais nele, digo. Confiança -o senhor sabe -não se tira das coisas feitas ou perfeitas: ela rodeia é o quente da pessoa. E despaireci meu espírito de ir procurar Otacília, pedir em casamento, mandado de virtude. Fui logo, depois de ser cinza. Ah, a algum, isto é que é, a gente tem de vassalar.

grande sertão : veredas 45Olhe: Deus come escondido, e o diabo sai por roda parte lambendo o prato... Mas eu gostava de Diadorim para poder saber que estes gerais são formosos.

Por que foi que não se fez combate, depois naqueles meses todos? A verdade digo ao senhor: os soldados do Governo perseguiam a gente. Major Oliveira, Tenente Ramiz e Capitão MeIo Franco - esses não davam espaço. E Medeiro Vaz pensava era um pensamento: a gente mamparreasse de com eles não guerrear, não se esperdiçar - porque as nossas armas guardavam um destino só, de dever. Escapulíamos, esquipávamos. Vereda em vereda, como os buritís ensinam, a gente varava para após. Se passava o Piratinga, que é fundo, se passava: ou no Vau da Mata ou no Vau da Boiada; ou então, pegando mais por baixo, o São Domingos, no Vau do José Pedro. Se não, subíamos beira desse, até às nascentes, no São Dominguinhos. A ser o importante, que se tinha de estudar, era avançar depressa, nas boas passagens nas divisas, quando militar vinha cismado empurrando. É preciso de saber os trechos de se descer para Goiás: em debruçar para Goiás, o chapa dão por lá vai terminando, despenha. Tem quebra-cangalhas e ladeiras terríveis vermelhas. Olhe: muito em além, vi lugares de terra queimada e chão que dá som -um estranho. Mundo esquisito! Brejo do Jatobazinho: de medo de nós, um homem se enforcou. Por aí, extremando, se

46 joão guimarães rosachegava até no Jalapão - quem conhece aquilo? -tabuleiro chapadoso, proporema. Pois lá um geralista me pediu para ser padrinho de filho. O menino recebeu nome de Diadorim, também. Ah, quem oficiou foi o padre dos baianos, saiba o senhor: população de um arraial baiano, inteira, que marchava de mudada -homens, mulheres, as crias, os velhos, o padre com seus petrechos e cruz e a imagem da igreja -tendo até bandinha-de-música, como vieram com todos, parecendo nação de maracatu! Iam para os diamantes, tão longe, eles mesmo dizendo: "... nos rios..." Uns tocavam jumentos de almocreve, outros carregavam suas coisas -sacos de mantimentos, trouxas de roupa, rede de caroá a tiracolo O padre, com chapéu-de-couro prà-trasado. Só era uma procissão sensata enchendo estrada, às poeiras, com o plequêio das alpercatas, as velhas tiravam ladainha, gente cantável. Rezavam, indo da miséria para a riqueza. E, pelo prazer de tomar parte no conforto de religião, acompanhamos esses até à Vila da Pedra-de-Amolar. Lá venta é da banda do poente, no tempo-das-águas; na seca, o vento vem deste rumo daqui. O cortejo dos baianos dava parecença com uma festa. No sertão, até enterro simples é festa.

Às vezes eu penso: seria o caso de pessoas de fé e posição se reunirem, em algum apropriado lugar, no meio dos gerais, para se viver só em altas rezas, fortíssimas, louvando a Deus e pedindo glória do perdão do mundo. Todos vinham comparecendo, lá se levantava enorme igreja, não havia mais crimes, nem ambição, e todo sofrimento se espraiava em Deus, dado logo, até à hora de cada uma morte cantar. Raciocinei isso com compadre meu Quelemém, e ele duvidou com a cabeça: -"Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho..." -ciente me respondeu.

Compadre meu Quelemém é um homem fora de projetos. O senhor vá lá, na Jijujã. Vai agora, mês de junho. A estrela-d'alva sai às três horas, madrugada boa gelada. É tempo da cana. Senhor vê, no escuro, um quebra-peito - e é ele mesmo, já risonho e suado, engenhando o seu moer. O senhor bebe uma cuia de garapa e dá a ele lembranças minhas. Homem de mansa lei, coração tão branco e grosso de bom, que mesmo pessoa muito alegre ou muito triste gosta de poder conversar com ele.

Todo assim, o que minha vocação pedia era um fazendão de Deus, colocado no mais tope, se braseando incenso nas cabeceiras das roças, o povo entoando hinos, até os

grande sertão: veredas 47pássaros e bichos vinham bisar. Senhor imagina? Gente sã valente, querendo só o Céu, finalizando. Mas diverso do que se vê, ora cá ora ali lá. Como deu uma moça, no Barreiro-Novo, essa desistiu um dia de comer e só bebendo por dia três gotas de água de pia benta, em redor dela começaram milagres. Mas o delegado-regional chegou, trouxe os praças, determinou o desbando do povo, baldearam a moas para o hospício de dôidos, na capital, diz-se que lá ela foi cativa de comer, por armagem de sonda. Tinham o direito? Estava certo? Meio modo, acho foi bom. Aquilo não era o que em minha crença eu prezava. Porque, num estalo de tempo, já tinham surgido vindo milhares desses, para pedir cura, os doentes condenados: lázaros de lepra, aleijados por horríveis formas, feridentos, os cegos mais sem gestos, loucos acorrentados, idiotas, héticos e hidrópicos, de tudo: criaturas que fediam. Senhor enxergasse aquilo, o senhor desanimava. Se tinha um grande nojo. Eu sei: nojo é invenção, do Que-Não-Há, para estorvar que se tenha dó. E aquela gente gritava, exigiam saúde expedita, rezavam alto, discutiam uns com outros, desesperavam de fé sem virtude - requeriam era sarar, não desejavam Céu nenhum. Vendo assaz, se espantava da seriedade do mundo para caber o que não se quer. Será acerto que os aleijões e feiezas estejam bem convenientemente repartidos, nos recantos dos lugares. Se não, se perdia qualquer coragem. O sertão está cheio desses. Só quando se jornadeia de jagunço, no teso das marchas, praxe de ir em movimento, não se nota tanto: o estatuto de misérias e enfermidades. Guerra diverte - o demo acha.

Mire veja: um casal, no Rio do Borá, daqui longe, só porque marido e mulher eram primos carnais, os quatro meninos deles vieram nascendo com a pior transformação que há: sem braços e sem pernas, só os tocos... Arre, nem posso figurar minha idéia nisso! Refiro ao senhor: um outro doutor, doutor rapaz, que explorava as pedras turmalinas no vale do Arassuaí, discorreu me dizendo que a vida da gente encarna e reencarna, por progresso próprio, mas que Deus não há. Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar - é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença

48 João guimarães rosade coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa encantoada - erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços. Dor não dói até em criancinhas e bichos, e nos dôidos - não dói sem precisar de se ter razão nem conhecimento? E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo mistério. O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver -a gente sabendo que ele não existe aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo. Se eu estou falando às flautas, o senhor me corte. Meu modo é este. Nasci para não ter homem igual em meus gostos. O que eu invejo é sua instrução do senhor...

De Arassuaí, eu trouxe uma pedra de topázio.Isto, sabe o senhor por que eu tinha ido lá daqueles lados? De mim, conto. Como é que se pode gostar do verdadeiro no falso? Amizade com ilusão de desilusão. Vida muito esponjosa. Eu passava fácil, mas tinha sonhos, que me afadigavam. Dos de que a gente acorda devagar. O amor? Pássaro que põe ovos de ferro. Pior foi quando peguei a levar cruas minhas noites, sem poder sono. Diadorim era aquela estreita pessoa -não dava de transparecer o que cismava profundo, nem o que presumia. Acho que eu também era assim. Dele eu queria saber? Só se queria e não queria. Nem para se definir calado, em si, um assunto contrário absurdo não concede seguimento. Voltei para os frios da razão. Agora, destino da gente, o senhor veja: eu trouxe a pedra de topázio para dar a Diadorim; ficou sendo para Otacília, por mimo; e hoje ela se possui é em mão de minha mulher!

Ou conto mal? Reconto.

Ao que nós acampados em pé duns brejos, brejal, cabo de várzea. Até, lá era favorável de defender que os cavalos se espairassem -por ter manga natural, onde se encostar, e currais falsos, de pegar gado brabeza. Natureza bonita, o capim macio. Me revejo, de tudo, daquele dia a dia. Diadorim restava um tempo com uma cabaça nas duas mãos, eu olhava para ela. -"Seja por ser, Riobaldo, que em breve rompemos adiante. Desta vez, a gente tange guerra..." -pronunciou, a prazer, como sempre quando assim, em véspera. Mas balançou a cabaça: tinha um trem dentro, um ferro, o que me deu desgosto; taco de ferro,

grande sertão: veredas 49sem serventia, só para produzir gastura na gente. -"Bota isso fora, Diadorim!" -eu disse. Ele não contestou, e me olhou de um hesitado jeito, que se eu tivesse falado causa impossível. Em tal, guardou o pedaço de ferro na algibeira. E ficava toda-a-vida com a cabaça nas mãos, era uma cabaça baiana fabricada, desenhada de capricho, mas que agora sendo para nojo. E, como me deu sede, eu peguei meu copo de corno lavrado, que não quebra nunca, e fomos apanhar água num poço, que ele me disse. Era por esconso por uma palmeira - duma de nome que não sei, de curta altura, mas regrossa, e com cheias palmas, reviradas para cima e depois para baixo, até pousar no chão com as pontas. Todas as palmas tão lisas, tão juntas, fechavam um coberto, remedando choupã de índio. Assino que foi de avistarem umas assim que os bugres acharam idéia de formar suas tocas. Aí a gente se curvar, suspendia uma folhagem, lá entrava. O poço abria redondo, quase, ou ovalado. Como no recesso do mato, ali intrim, roda luz verdeja. Mas a água, mesma, azul, dum azul que haja -que roxo logo mudava. A vai, coração meu foi forte. Sofismei: se Diadorim segurasse em mim com os olhos, me declarasse as rodas as palavras? Reajo que repelia. Eu? Asco! Diadorim parava normal, estacado, observando tudo sem importância. Nem provia segredo. E eu tive decepção de logro, por conta desse sensato silêncio? Debrucei, ia catar água. Mas, qual, se viu um bicho -rã brusca, feiosa: botando bolhas, que à lisa cacheavam. Resumo que nós dois, sob num tempo, demos para trás, discordes. Diadorim desconversou, e se sumiu, por lá, por aí, consoante a esquisitice dele, de sempre às vezes desaparecer e tornar a aparecer sem menos. Ah, quem faz isso não é por ser e se saber pessoa culpada?

No que vim para um grupo de companheiros, esses estavam jogando buzo, enchendo folga. Por simples que a companheira da naqueles derradeiros tempos me caceteava com um enjôo, todos eu achava muito ignorantes, grosseiros cabras. Somente que na hora eu queria a frouxa presença deles -fulão e sicrão e beltrão e romão -pessoal ordinário. A tanto. mesmo sem fome, providenciei para mjm uma jacuba, no come-calado. E quis -que até me perguntei -pensar na vida: "Penso?" Mas foi no instante em que todos levantaram as caras: só sendo um rebuliço, acolá, na virada que principiava a vertente -onde é que estavam uns outros, que chamavam, muito, acenando especial. Pois fomos,
ligeiro, ver o que, subindo pelo resfriado.

50 Joãoguimarães rosa,

Passava era uma tropa, os diversos lotes de burros, que vinham de São Romão, levavam sal para Goiás. E,o, arrieiro-mestre relatando uma infeliz notícia, dessas da vida. - Ele era alto, feições compridas, dentuço?" - Medeiro Vaz exigiu certeza. -"Olhe, pois era" -o arrieiro respondeu -"e, antes de morrer, deu o nome: que era Santos-Reis... Mais não propôs dizer, porque ai se exalou. Comandante, o senhor creia, nós tivemos grande pena... A gente, em volta se consternava. Aqueles tropeiros. No Cururu, tinham achado o Santos-Reis, que morria urgente; tinham acendido vela, e enterrado. Febres? Ao menos, mais, a alma descansasse. A gente tirou chapéus, em voto todos se benzendo. E o Santos-Reis era o homem que vivo fazia mais falta -ele estava viajando para trazer recado e combinação, da parte de Sô Candelário e Titão Passos, chefes em nosso favor na outra grande banda do Rio.

-"Agora alguém carece de ir..." -Medeiro Vaz decidiu, olhando salteado; amém! -nós apreciávamos. Eu espiei, caçando Diadorim, que ali bem defronte de mim se portava, mesmo segurava uma vara-de-ferrão, considerei nele certo propósito, de despique gandaiado... Apartei minhas vistas. Requeri, dei passo: -"Se sendo ordens, Chefe, eu gostava era de ir..." Medeiro Vaz limpou a goela. A meio, eu estava me lançando, mas mais negaceando prosápia: duvidoso d'ele consentir; pelo bom atirador que eu era, o melhor e mór, necessitavam de mim, haviam de querer me mandar escoteiro, dizedor de mensagem? E aí se deu o que se deu -o isto é. Medeiro Vaz concordou! -"Mas carece de levar um companheiro..." -ele propôs. Aí em tanto eu não devia de me calar, deixar alheia a escolha do segundo, que não me competia? Ah, ânsia: que eu não queria o que de certo queria, e que podia se surtir de repente... E a vontade de fim, que me ora vinha ranger na boca, me levou num avanço: -"Sendo suas ordens, Chefe. o Sesfredo comigo vai..." -falei. Nem olhei Diadorim. Medeiro Vaz aprouve. Me encarou, demais, e despachou, em duríssimo: -"Vai, então, e no caminho não morre!" A ser que Medeiro Vaz, por esse tempo, já t acusava doença a quase acabada -no peso do fôlego e no desmancho dos traços. Estava amarelo almecegado, se curvava sem querer, e diziam que no verter água ele gemia. Ah, mas outro igual eu não conheci. Quero ver o homem deste homem!... Medeiro Vaz -o Rei das Gerais...

Por que era que eu estava procedendo à-toa assim? Senhor, sei? O senhor vá pondo seu perceber. A gente vive

grande sertão : veredas 51repetido, o repetido, e, escorregável, num mim minuto, já está empurrado noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para de lá de tantos assombros... Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. Mesmo fui muito rolo! Hoje em dia, não me queixo de nenhuma coisa. Não tiro sombras dos buracos. Mas, também, não há jeito de me baixar em remorso. Sim, que só duma coisa. E dessa, mesma, o que tenho é medo. Enquanto se tem medo, eu acho até que o bom remorso não se pode criar, não é possível. Minha vida não deixa benfeitorias. Mas me confessei com sete padres, acertei sete absolvições. No meio da noite eu acordo e pelejo para rezar. Posso. Constante eu puder, meu suor não esfria! O senhor me releve tanto dizer.

Mire veja o que a gente é: mal dali a um átimo, eu selando meu cavalo e arrumando meus dobros, e já me muito entristecia. Diadorim me espreitava de longe, afetando a espécie duma vagueza. No me despedir, tive precisão de dizer a ele baixinho: -"Por teu pai vou, amigo, mano-oh-mano. Vingar Joca Ramiro..." A fraqueza minha, adulatória. Mas ele respondeu: -"Viagem boa, Rio- baldo. E boa-sorte..." Despedir dá febre.

Galopando junto com o Sesfrêdo, larguei aquele lugar do Burití das Três Fileiras. Pesares que me desenrolavam. E então eu decifrei meu arranque de ter querido vir com o Sesfrêdo. Que ele, se sabia, tinha deixado, fazia muitos anos, em terras do Jequitinhonha, uma moça que apaixonava, e que era a mocinha de cabelos louros. -"Sesfrêdo, me conta, me fala nesse acontecer..." -nem bem cem braças andadas eu já pedia a ele. Era como se eu tivesse de caçar emprestada uma sombra de um amor. -"E você não volta para lá. Sesfrêdo? Você aguenta o existir?" - perguntei. -"Guardo isso, para às vezes ter saudade. Berimbau! Saudade, só..." -e ele alargou as ventas, de tanto riso. Vi que a estória da moça era falsa. De inventar pouco se ganha. Regra do mundo é muito dividida. O Sesfrêdo comia muito. E sabia assoviar seguido, copiando o de muitos pássaros.

Ao viável, eu tinha de atravessar as tantas terras e municípios, jogamos uma viagem por este Norte, meia geral. Assim conheço as províncias do Estado, não há onde eu não tenha aparecido. A que viemos: por Extrema de Santa Maria - Barreiro Claro -Cabeça de Negro -

52 João guimarães rosaCórrego Pedra do Gervásio -Acarí -Vieira -e Fundo -buscando jeito de encostar no de São Francisco. Novidade não houve. Passamos, numa barca. Só sempre bater para o nascente, direita mente em cima de Tremedal, chamada hoje Monte-Azul. Sabíamos: um pessoal nosso perpassava por lá, na Jaíba, até à Serra Branca, brabas terras vazias do Rio Verde-Grande. De madrugada, acordamos em sua janela um velhozinho, dono de um bananal. O velhozinho era amigo, executou o recado. Daí a cinco madrugadas, retornamos. Era para vir alguém, quem veio foi João Goanhá, próprio. E as descrições que deu foram de todas as piores. Sô Candelário? Morto em tiroteio de combate, metralhadoras tinham serrado o corpo dele, de esguelha, por riba da cintura. O Alípio, preso, levado para a cadeia de algum lugar. Titão Passos? Ah, perseguido por uma soldadesca, tivera de se escapar para a Bahia, pela proteção do Coronel Horácio de Matos. Só mesmo João Goanhá era quem ainda estava. Comandava saldo de uns homens, os poucos. Mas coragem e munição não faltavam. -"E os Judas?" -perguntei, com triste raciocínio: por que era que os soldados não deixavam a gente em paz, mas com aqueles;- não terçavam? -"Se diz que eles têm uma proteção preta..." -João Goanhá me esclareceu: -"O Hermógenes fez o pauto. É o demônio rabudo quem pune por ele..." Nisso todos acreditavam. Pela fraqueza do meu medo e pela força do meu ódio, acho que eu fui o primeiro que cri.

Ainda disse João Goanhá que estávamos em brevidade. Porque ele sabia que os Judas, reforçados, tinham resolvido passar o Rio em dois lugares, e marcharem em cima de Medeiro Vaz, para acabar com ele de uma vez, no país de lá. Onde era que o perigo, Medeiro Vaz precisava de nós.

Mas não pudemos. Mal a gente se tocou, para a Cachoeira do Salto, e esbarramos com tropa de soldados -tenente Plínio. Foi fogo. Fugimos. Fogo no Jacaré Grande -tenente Rosalvo. Fogo no Jatobá Torto -sargento Leandro. Volteamos... Sobre aí, me senti pior de sorte que uma pulga entre dois dedos. No formato da forma, eu não era o valente nem mencionado medroso. Eu era um homem restante trivial. A verdade que diga, eu achava que não tinha nascido para aquilo, de ser sempre jagunço não gostava. Como é, então, que um se repinta e se garrafa? Tudo sobrevém. Acho, acho, é do influimento comum, e do tempo de todos. Tanto um prazo de travessia marcada, sazão, como os meses de seca e os de chuva. Será? Medida de muitos outros igualasse com a minha, esses também não sentindo e nãogrande sertão: veredas 53pensando. Se não, por que era que eram aqueles aprontados versos -que a gente cantava, tanto toda-a-vida, indo em bando por estradas jornadas, à alegria fingi da no coração?:

Olererê, baiana...
eu ia e não 'Vou mais:
eu faço
que vou
lá dentro, oh baiana! "
e volto do meio pra trás... -?

João Goanhá, por valentão e verdadeiro, nem carecia de estadear orgulho. Pessoa muito leal e briosa. Ele me disse: -"Agora, da gente não sei o que vai ser... Para guerra grande, eu acho que só Joca Ramiro é que era capaz..." Ah, mas João Goanhá também tinha suas cartas altas. Homem de grito grosso. E, mesmo ignorante analfabeto, de repente ele tirava, sei não de onde, terríveis mindinhas idéias, mortes diversas. Assim a gente experimentava, cá e cá, falseando fuga. Os campos-gerais ali também tem. Tombadores. Arre, os tremedais, já viu algum? O chão deles consiste duro enxuto, normal que engana; quem não sabe o resto, vem, pisa, vai avançando, tropa com cavalos, cavalama. Seja sem espera, quando já estão meio no meio, aquilo sucrepa: pega a se abalar, ronca, treme escapulindo, feito gema de ovo na frigideira. Ei! Porque, debaixo dá crosta seca, rebole ocultado um semifundo, de brejão engulidor...Pois, em roda dali, João Goanhá dispôs que a gente se amoitasse -três golpes de homens -tocaiando. Ao de manhã, primeiro passaram os do sargento Leandro, esses eram os menos, e um guia pagavam, por conhecer o caminho firme. Mas fomos lá, -às pressas espalhamos de lugar os ramos verdes de árvore, que eles tinham botado para a certa informação. No depois, vinham os do tenente. Tenente, tenente, tu quer! Seguidos por ali entraram, ah. Dos nossos, uns, acolá, deram tiros, por disfarçação. Iscas! Cavalaria dos praças se avexou. Ave, e pronto, de repente foi: a casca de terra sacudia, se rachou em cruzes, estalando em muitos metros -balofou. Os cavalos entornados -era como despejar prateleIras cheias -e os soldados aiando gritos, se abraçavam com os animais caintes, ou com o ar, uns a esmo desfechavam mosquetão. Mas encalcados se afundando, pra não mais. A gente, se queria, mirava, ainda acertava neles. Coisas que vi, vi, vi -oi... Eu não atirei. Não tive braçagem. Talvez tive pena.

54 João guimarães rosa

Tanto por tanto, daí se encachorraram mais em nós, por beber vinganças. De campos e matas, vargens e grotas, em cada ponto para trás, dos lados e adiante da gente, ei eram só soldados, montão, se gerando. Furado-do-Meio... Serra do Deus-Me-Livre. Passagem da Limeira. Chapada do Covão. Solón Nelson morreu. Arduininho morreu. Morreram o Figueiró, Batata-Roxa, Dávila Manhoso, o Campêlo, o Clange, Deovídio, Pescoço-Preto, Toquim, o Sucivre, Elisiano, Pedro Bernardo -acho que foram esses, todos. Chapada do Sumidouro. Córrego do Poldro. Mortos mais -uns seis. Corrijo: com outros, que pegos presos -se disse que foram acabados! Doideamos. A Bahia estava cercada nas portas. Achavam de tomar regalia de desforra na gente, até qualquer molambo de sujeito, paisano morador. Ah, às vezes, perdiam ligeiro essa graça...Gerais da Pedra. Lá, o Eleutério se apartou da gente, umas cem braças, e foi, a pé, bateu em porta duma cafua, por esclarecer. O capiau surgiu, ensinou alguma coisa, errada. Eleutério agradeceu, deu as costas, veio andando uns passos. O capiau então chamou. Eleutério virou para trás, para - ouvir o que havia, e levou na cara e nos peitos o cheio duma carga de chumbo fino. Cegou, rodou, entrupicado, arreganhava os braços, todo se sarapintando das manchas vermelhas, que cresciam a cabelo dele aumentou em pé. E a soldadesca atirava, de emboscados no mato do c6rrego, e na beira do cerrado, da outra banda. O capiau se encobriu detrás do forno de assar , biscoito -de lá fazia pontaria com a espingarda -e balas."nossas levantavam terra ao redor dali, feito um ciscado de cachorro grande. Dentro da cafua também restavam outros soldados; que deram contas a Deus. Ataliba, com o facão, pregou o capiau na taipa da cafua, ele morreu mansinho, parecia um santo. Ficou lá, espetado. Nós -eh -bom. Conseguimos aragem. Até em um ponto de a salvo conversarmos.

Serra Escura. Nem munição nem de-comer não sobravam. De forma que a gente carecia de se separar, cada um por seu risco, como pudesse caçar escape. Se esparramavam os goanhás. De si por si, quem vivesse viesse para cá do Rio, para reunião: na juntura da Vereda Saco dos Bois com o Ribeirão Santa Fé. Ou ir de direto para onde estivesse Medeiro Vazo Ou, caso o inimigo rondasse perto demais, então no Burití-da-Vida, São Simão do Bá, ou mais em riba, ali onde o Ribeirão Gado Bravo é vadeável. Ao que João Goanhá mandou. A pressa era pressa. O ar todo do campo cheirava a pólvora e a soldados. Diante de mim, nunca terminava de atar as correias do gibão um Cunha Branco, sarado; cabra velho guerreiro: ele boiava língua em

grande sertão : veredas 55boca aberta. E medo meu, medi muito maior. Se despedimos. Escorregando sem rumo, eu fui, vim, o Sesfrêdo comigo também, viemos. Com a graça de Deus, saímos fora da roda do perigo. Chegamos no Córrego Cansanção, não longe do Arassuaí. Por durante um tempo, carecíamos de ter algum serviço reconhecido, no viver tudo cabe. Nossas armas, com parte das roupas, campeamos um seguro lugar, deixamos escondidas. Aí, a gente se ajustou no meio do pessoal daquele doutor, que estava na mineração, que eu já disse e o senhor sabe.

Por que não ficamos lá? Sei e não sei. Sesfrêdo esperava de mim toda decisão. Algum remorso, de não se cumprir de ir, de desertados? Não vê que não, desafasto. Gente sendo dois, garante mais para se engambelar, etcétera de traição não sopra escrúpulos, corno nem de crime nenhum, não agasta: igual lobisomem verte a pele. Só se, companheiros sobrantes, a gente amiúda no ajuizar o desonroso assunto, isto sim, rança o descrédito de se ser tornadiço covarde. Mas eu podia rever proveito, caçar de voltar dali para a casa-grande de Selorico Mendes, exigir meu estado devido, na Fazenda São Gregório. Temeriam! Assim e silva, como em outro tempo, adiante, podia flauteado comparecer no Buritís Altos, por conta de Otacília - continuação de amor. Quis não. Suasse saudade de Diadorim? A ponto no dizer, menos. Ou nem não tinha. Só corno o céu e as nuvens lá atrás de uma andorinha que passou. Talvez, eu acho, também, que foi juvenescendo em mim uma inclinação de abelhudice: assaz eu queria me estar misturado lá, com os medeiro-vazes, ver o fim de tudo. Em mês de agosto, burití vinhoso... Arassuaí não eram os meus campos...Viver é um descuido prosseguido. Aí, as noites cambando para o entrar das chuvas, os dias mal. Desenguli. -"Tempo de ir. Vamos?" -eu disse para Sesfrêdo. - "Vamos, demais!" -o Sesfrêdo me respondeu.

Ah, eh e não, alto-lá comigo, que assim falseio, o mesmo é. Pois ia me esquecendo: o Vupes! Não digo o que digo, se o do Vupes não orço -que teve, tãomente. esse um era estranja, alemão, o senhor sabe: clareado, constituído forte, com os olhos azuis, esporte de alto, leandrado, rosalgar -indivíduo, mesmo. Pessoa boa. Homem sistemático, salutar na alegria séria. Hê, hê, com toda a confusão de política e brigas, por aí, e ele não somava com nenhuma coisa: viajava sensato, e ia desempenhando seu negócio dele no sertão -que era o de trazer e vender de tudo para os fazendeiros: arados, enxadas, debulhadora, facão de aço,

56 joão guimarães rosaferramentas rógers e roscofes, latas de formicida, arsênico e creolinas; e até papa-vento, desses moinhos-de-vento de sungar água, com torre, ele tomava empreitada de armar. Conservava em si um estatuto tão diverso de proceder, que todos a ele respeitavam. Diz-se que vive até hoje, mas abastado, na capital - e que é dono de venda grande, loja, conforme prosperou. Ah, o senhor conheceu ele? Ô titiquinha de mundo! E como é mesmo que o senhor frasêia? Wusp? É. Seo Emílio Wuspes... Wúpsis... Vupses. Pois esse Vupes apareceu lá, logo vai me reconheceu, como me conhecia, do Curralinho. Me reconheceu devagar, exatão. Sujeito escovado! Me olhou, me disse: -"Folgo. Senhor estar bom? Folgo..." E eu gostei daquela saudação. Sempre gosto de tornar a encontrar em paz qualquer velha conhecença -consoante a pessoa se ri, a gente se acha de voltar aos passados, mas parece que escolhidas só as peripécias avaliáveis, as que agradáveis foram. Alemão Vupes ali, e eu recordei lembrança daquelas mocinhas -a Miosótis e a Rosa'uarda -as que, no Curralinho, eu pensava que tinham sido as minhas namoradas. -"Seo Vupes, eu também folgo. Senhor também estar "bom? Folgo..." - que eu respondi, civilizadamente. Ele pitava era charutos.Mais me disse: -"Sei senhor homem valente, muito valente. ..Eu precisar de homem valente assim, viajar meu, quinze dias, sertão agora aqui muito atrapalhado, gente braba, tudo..." Destampei, ri que ri, de ouvir.

Mas o mais garboso fiquei, prezei a minha profissão. Ah, o bom costume de jagunço. Assim que é vida assoprada, vivida por cima. Um jagunceando, nem vê, nem repara na pobreza de todos, cisco. O senhor sabe: tanta pobreza geral, gente no duro ou no desânimo. Pobre tem de ter um triste amor à honestidade. São árvores que pegam poeira. A gente às vezes ia por aí, os cem, duzentos companheiros a cavalo, tinindo e musicando de tão armados -e, vai, um sujeito magro, amarelado, saía de algum canto, e vinha, espremendo seu medo, farraposo: com um vintém azinhavrado no conco da mão, o homem queria comprar um punhado de mantimento; aquele era casado, pai de família faminta. Coisas sem continuação... Tanto pensei, perguntei: - "Para que banda o senhor tora?" E o Vupes respondeu: - "Eu, direto, cidade São Francisco, vou forte." Para falar, nem com uma pontinha de dedo ele não bulia gesticulado. Então, era mesmo meu rumo -aceitei -o destinar! Daí, falei com o Sesfrêdo, que quis também; o Sesfrêdo não presumia nada, ele naquilo não tinha próprio destaque.

grande sertão: veredas 57

Mas os caminhos não acabam. Tal por essas demarcas de Grão-Mogol, Brejo das Almas e Brasília, sem confrontos de perturbação, trouxemos o seo Vupes. Com as graças, dele aprendi, muito. O Vupes vivia o regulado miúdo, e para tudo tinha sangue-frio. O senhor imagine: parecia que não se mealhava nada, mas ele pegava uma coisa aqui, outra coisinha ali, outra acolá - uma moranga, uns ovos, grelos de bambú, umas ervas - e, depois, quando se topava com uma casa mais melhorzinha, ele encomendava pago um jantar ou almoço, pratos diversos, farto real, ele mesmo ensinava o guisar, tudo virava iguarias! Assim no sertão, e ele formava conforto, o que queria. Saiba-se! Deixamos o homem no final, e eu cuidei bem dele, que tinha demonstrado a confiança minha...

Demos no Rio, passamos. E, aí, a saudade de Diadorim voltou em mim, depois de tanto tempo, me custando seiscentos já andava, acoroçoado, de afogo de chegar, chegar, e perto estar. Cavalo que ama o dono, até respira do mesmo jeito. Bela é a lua, lualã, que torna a se sair das nuvens, mais redondada recortada. Viemos pelo Urucúia. Rio meu de amor é o Urucúia. O chapadão - onde tanto boi berra. Daí, os gerais, com o capim verdeado. Ali é que vaqueiro brama, com suas boiadas espatifadas. Ar que dá açoite de movimento, o tempo-das-águas de chegada, trovoada trovoando. Vaqueiros todos vaquejando. O gado esbravaçava. A mal que as notícias referiam demais a cambada dos Judas, aumentável, a corja! -...A tantos quantos ?" -eu pondo meu perguntar. -"Os muitos! Uma monarquia deles..." -os vaqueiros respondendo.

Mas Medeiro Vaz não se achava, os nossos, deles ninguém não sabia bem. Tocamos, fim que o mundo tivesse. Só deerrávamos. Assim como o senhor, que quer tirar é instantâneo das coisas, aproximar a natureza. Estou entendido. Esbarramos num varjeado, esconso lugar, por entre o da-Garapa e o da-Jibóia, ali tem três lagoas numa, com quatro cores: se diz que a água é venenosa. E isso de que me serve? Água, águas. O senhor verá um ribeirão, que verte no Canabrava -o que verte no Taboca, que verte no Rio Preto, o primeiro Preto do Rio Paracatú - pois a daquele é sal só, vige salgada grossa, azula muito: quem conhece fala que é a do mar, descritamente; nem boi não gosta, não traga, eh não. E tanta explicação dou, porque muito ribeirão e vereda, nos contornados por aí, redobra nome. Quando
um ainda não aprendeu, se atrapalha, faz raiva.
Só Preto, já molhei mão nuns dez. Verde,

58 joão guimarães rosauns dez. Do Pacarí, uns cinco. Da Ponte, muitos. Do Boi, ou da Vaca, também. E uns sete por nome de Formoso.São Pedro, Tamboril, Santa Catarina, uma porção. O sertão é do tamanho do mundo.

Agora, por aqui, o senhor já viu: Rio é só o São Francisco, o Rio do Chico. O resto pequeno é vereda. E algum ribeirão. E agora me lembro: no Ribeirão Entre-Ribeiros, o senhor vá ver a fazenda velha, onde tinha um cômodo quase do tamanho da casa, por debaixo dela, socavado no antro do chão - lá judiaram com escravos e pessoas, até aos pouquinhos matar... Mas, para não mentir, lhe digo: eu nisso não acredito. Reconditório de se ocultar ouro, tesouro e armas, munição, ou dinheiro falso moedado, isto sim. O senhor deve de ficar prevenido: esse povo diverte por demais com a baboseira, dum traque de jumento formam tufão de ventania. Por gosto de rebuliço. Querem-porque-querem inventar maravilhas glorionhas, depois eles mesmos acabam temendo e crendo. Parece que todo o mundo carece disso, Eu acho, que.

Assim, olhe: tem um marimbú - um brejo matador, no Riacho Ciz -lá se afundou uma boiada quase inteira, que apodreceu; em noites, de depois, deu para se ver, deitado a fora, se deslambendo em vento, do cafofo, e perseguindo: tudo, um milhão de lavareda azul, de jãdelãfo, fogo-fá. Gente que não sabia, avistaram, e endoideceram de correr fuga. Pois essa estória foi espalhada por toda a parte, viajou mais, se duvidar, do que eu ou o senhor, falavam que era sinal de castigo, que o mundo ia se acabar naquele ponto, causa de, em épocas, terem castrado um padre, ali perto umas vinte léguas, por via do padre não ter consentido de casar um filho com sua própria mãe. A que, até, cantigas rimaram: do Fogo-Azul-do-Fim-do-Mundo. Hê, hê?...

Agora, a forca, eu vi -forca moderna, esquadriada, arvorada bem erguida no elevado, em madeira de boa lei, parda: sucupira. Ela foi num morrote, depois do São Simão do Bá, perto da banda da mão-direita do Pripitinga. A estúrdia forca de enforcar, construída aprovada ali particularmente, porque não tinham recurso de cadeia, e pajear criminoso por viagens era dificultoso, tirava as pessoas de seus serviços. Aí, então, usavam. Às vezes, da redondeza, vinham até trazendo o condenado, a cavalo, para a forca, pública. Só que um pobre veio morar próximo, quase debaixo dela, cobrava sua esmola, em cada útil caso, dando seguida cavava a cova e enterrava o corpo, com cruz. No mais nada.

grande sertão: veredas 59

Semelhante não foi, quando um homem, Rudugério de Freitas, dos Freitas ruivos da Água-Alimpada, mandou obrigado um filho dele ir matar outro, buscar para matarem, esse outro, que roubou sacrário de ouro da igreja da Abadia. Aí, então, em vez de cumprir o estrito, o irmão combinou com o irmão, os dois vieram e mataram mesmo foi o velho pai deles, distribuído de foiçadas. Mas primeiro enfeitaram as foices, urdindo com cordões de embira e várias flores. E enqueriram o cadáver paterno em riba da casa - casinha boa, de telhas, a melhor naquele trecho. Daí, reuniram o gado: que iam levando para distante vender. Mas foram logo pegos. A pegar, a gente ajudou. Assim, prisioneiros nossos. Demos julgamento. Ao que, fosse Medeiro Vaz, enviava imediato os dois para tão razoável forca. Mas porém, o chefe nosso, naquele tempo, já era -o senhor saiba -: Zé Bebelo!

Com Zé Bebelo, ôi, o rumo das coisas nascia inconstante diferente, conforme cada vez. A papo: -"Co-ah! Por que foi que vocês enfeitaram premeditado as foices ?" -ele interrogou. Os dois irmãos responderam que tinham executado aquilo em padroeiragem à Virgem, para a Nossa Senhora em adiantado remitir o pecado que iam obrar, e obraram dito e feito. Tudo que Zé Bebelo se entesou sério, em pufo, empolo, mas sem rugas em testa, eu prestes vi que ele estava se rindo por de dentro. Tal, tal, disse: -"Santíssima Virgem. .." E o pessoal todo tirou os chapéus, em alto respeito. -"Pois, se ela perdoa ou não, eu não sei. Mas eu perdôo, em nome dela -a Puríssima, Nossa Mãe!" -Zé Bebelo decretou. -"O pai não queria matar? Pois então, morreu - dá na mesma. Absolvo! Tenho a honra de resumir circunstância desta decisão, sem admitir apelo nem revogo, legal e lealdado, conformemente!..." Aí mais Zé Bebelo disse, como apreciava: -"Perdoar é sempre o justo e certo..." -pirlimpim, pimpão. Mas, como os dois irmãos careciam de algum castigo, ele requisitou para o nosso bando aquela gorda boiada, a qual pronto revendemos, embolsamos. E desse caso derivaram também uma boa cantiga violeira. Mas deponho que Zé Bebelo somente determinou assim naquela ocasião, pelo exemplo pela decência. Normal, quando a gente encontrava alguma boiada tangida, ele cobrava só imposto de uma ou umas duas reses, para o nosso sustento nos dias. Autorizava que era preciso se respeitar o trabalho dos outros, e entusiasmar o afinco e a ordem, no meio do triste sertão.

Zé Bebelo -ah. Se o senhor não conheceu esse homem, deixou de certificar que qualidade de cabeça de gente a na-

60 João guimarães rosatureza dá, raro de vez em quando. Aquele queria saber tudo, dispor de tudo, poder tudo, tudo alterar. Não esbarrava quieto. Seguro já nasceu assim, zureta, arvoado, criatura de confusão. Trepava de ser o mais honesto de todos, ou o mais danado, no tremeluz, conforme as quantas. Soava no que falava, artes que falava, diferente na autoridade, mas com uma autoridade muito veloz. Desarmado, uma vez, caminhou para o Leôncio Du, que tinha afastado todo o mundo e meneava um facãozão. Como gritou: -"Você quer vermelho? Te racho, fré!" Ao de que, o Leôncio Du decidiu deixou o facão cair, e se entregou. Senhor ouve e sabe? Zé Bebelo era inteligente e valente. Um homem consegue intrujar de tudo; só de ser inteligente e valente é que muito não pode. E Zé Bebelo pegava no ar as pessoas. Chegou um brabo, cabra da Zagaia, recomendado. -"Tua sombra me espinha, joazeiro!" -Zé Bebelo a faro saudou. E mandou amarrar o sujeito, sentar nele uma surra de peia. Atual, o cabra confessou: que tinha querido vir drede para trair, em empreita encobertada. Zé Bebelo apontou nos cachos dele a máuser: estampido q"e espatifa -as miolagens foram se grudar longe e perto. A gente pegou cantando a Moda-do-Boi.

No regular, Zé Bebelo pescava, caçava, dansava as dansas, exortava a gente, indagava de cada coisa, laçava rês ou topava à vara, entendia dos cavalos, tocava violão, assoviava musical; só não praticava de buzo nem baralho -declarando ter receios, por atreito demais a vício e riscos de jogo. Sem menos, se entusiasmava com qual-me-quer, o que houvesse: choveu, louvava a chuva; trapo de minuto depois, prezava o sol. Gostava, com despropósito, de dar conselhos. Considerava o progresso de todos -como se mais esse todo Brasil, territórios -e falava, horas, horas. -"Vim de vez !" -disse, quando retornou de Goiás. O passado, para ele, era mesmo passado, não vogava. E, de si, parte de fraco não dava, nenhão, nunca. Certo dia, se achando trotando por um caminho completo novo, exclamou: -"Ei, que as serras estas às vezes até mudam muito de lugar!. .." -sério. E era. E era mas que ele estava perdido, deerrado de rota, hã, hã. Ah, mas, com ele, até o feio da guerra podia alguma alegria, tecia seu divertimento. Acabando um combate, saía esgalopado, revólver ainda em mão, perseguir quem achasse, só aos brados: -"Viva a lei! Viva a lei!..." - e era o pipoco-paco. Ou: -"Paz! Paz!" -gritava também; e bala: se entregaram mais dois. - "Viva a lei! Viva a lei!..."
Há-de-o, que quilate, que lei, alguém soubesse?
Tanto aquilo, sucinto, a fama correu.

grande sertão: veredas 61Dou-lhe qual: que, uma vez, ele corria a cavalo, por exercício, e um veredeiro que isto viu se assustou, pulou de joelhos na estrada, requerendo: -"Não faz vivalei em mim não, môr-de-Deus, seu Zebebel, por perdão..." E Zé Bebelo jogou para o pobre uma cédula de dinheiro; gritou: -"Amonta aqui, irmão, na garupa!" -trouxe o outro para com a gente jantar. Esse era ele. Esse era um homem. Para Zé Bebelo, melhor minha recordação está sempre quente pronta. Amigo, foi uma das pessoas nesta vida que eu mais prezei e apreciei.

Pois porém, ao fim retomo, emendo o que vinha contando. A ser que, de campinas a campos, por morros, areiões e varjas, o Sesfrêdo e eu chegamos no Marcavão. Antes de lá, inchou o tempo, para chover. Chuva de desenraizar todo pau, tromba: chuvão que come terra, a gente vendo. Quem mede e pesa esses demais d'água? Rios foram se enchendo. Apeamos no Marcavão, beira do do-Sono. Medeiro Vaz morreu, naquele país fechado. Nós chegamos em tempo.

Ao quando encontramos o bando, foi ali, Medeiro Vaz, já estava mal; talvez por isso a alegria comum não pôde se dizer, nem Diadorim me abraçou nem demonstrou um salves por minha volta. Fiquei sincero. A tristeza e a espera má tomavam conta da gente. -"O mais é o pior: é que tem inimigo, próximo, tocaiando..." -Alaripe me disse. Muito chovido de noite -as árvores esponjadas. Mesmo dava um frio vento, com umidades. Para agasalhar Medeiro Vaz, tinham levantado um boi -o senhor sabe: um couro só, espetado numa estaca, por resguardar a pessoa do rumo donde vem o vento -o bafe-bafe. Acampávamos debaixo de grandes árvores. O barulhim do rio era de bicho em bicheira. Medeiro Vaz jazente numa manta de pele de bode branco -aberto na roupa, o peito, cheio de cabelos grisalhados. A barriga dele tinha inflamado muito, mas não era de hidropisia. Era de dores. Quando vislumbrou de mim, aí armou no se aprumar, pelejando para me ver. Os olhos -o alvor, como miolo de formigueiro. Mas se abriu, arriou os braços, e mediu o chão com suas costas. "Está no bilim-bilim" -eu pensei. Ah, a cara -arre de amarela, o amarelamento: de palha! Assim desse jeito ele levou o dia quase a termo.

A tarde foi escurecendo. Ao menos Diadorim me chamou adeparte; ele tramava as lágrimas. -"Amizade, Riobaldo, que eu imaginei em você esse prazo inteiro. .." - e apertou
minha mão. Avesso fiquei, meio sem jeito.

62 joão guimarães rosaAí, chamaram: -"Acode, que o chefe está no fatal!" Medeiro Vaz, arquejando, cumprindo tudo. E o queixo dele não parava de mexer; grandes momentos. Demorava. E deu a panca, troz-troz forte, como de propósito: uma chuva de arrobas de peso. Era quase sonoite. Reunidos em volta, ajoelhados, a gente segurava uns couros abertos, para proteger a morte dele. Medeiro Vaz -o rei dos gerais -; como era que um daquele podia se acabar?! A água caía, às despejadas, escorria nas caras da gente, em fios pingos. Debruçando por debaixo dos couros, podia-se ver o fim que a alma obtém do corpo. E Medeiro Vaz, se governando mesmo no remar a agonia, travou com esforço o ronco que puxava gosma de sua goela, e gaguejou: -"Quem vai ficar em meu lugar? Quem capitanêia?..."Com a estrampeação da chuva, os poucos ouviram. Ele só falava por pedacinhos de palavras. Mas eu vi que o olhar dele esbarrava em mim, e me escolhia. Ele avermelhava os olhos? Mas com o cirro e o vidrento. Coração me apertou estreito. Eu não queria ser chefe! "Quem capitanêia..." Vi meu nome no lume dele. E ele quis levantar a mão para me apontar. As veias da mão...Com que luz eu via? Mas não pôde. A morte pôde mais. Rolou os olhos; que ralava, no sarrido. Foi dormir em rede branca. Deu a venta.

Era seu dia de alta tarefa. Quando estiou a chuva, procuramos o que acender. Só se trouxe uma vela de carnaúba, o toco, e um brandão de tocha. Eu tinha passado por um susto. Agora, a meio a vertigem me dava, desnorteado na vontade de falar aqueles versos, como quem cantasse um coreto:

Meu boi preto mocangueiro,
árvore para te apresilhar
Palmeira que não debruça:
burití -sem entortar...

Deviam de tocar os sinos de todas as igrejas!

Cobrimos o corpo com palmas de burití novo, cortadas molhadas. Fizemos quarto, todos, até ao quebrar da barra. Os sapos gritavam latejado. O sapo-cachorro arranhou seu rouco. Alguma anta assoviava, assovio mais fino que o relincho, rincho dum poldrinho. De aurora, cavacamos uma funda cova. A terra dos gerais é boa.

Tomou-se café, e Diadorim me disse, firme:

grande sertão: vereda 63

-"Riobaldo, tu comanda. Medeiro Vaz te sinalou com as derradeiras ordens..." Todos estavam lá, os brabos, me olhantes -tantas meninas-dos-olhos escuras repulavam: às duras -grão e grão -era como levando eu, de milhares, uma carga de: chumbo grosso ou chuvas-de-pedra. Aprovavam. Me queriam governando. Assim estremeci por interno, me gelei de não poder palavra. Eu não queria, não queria. Aquilo revi muito por cima de minhas capacidades. A desgraça de João Goanhá não ter vindo! Rentemente, que eu não desejava arreglórias, mão de mando. Enguli cuspes. Avante por fim, como que respondi às gagas, isto disse: -"Não posso... Não sirvo..."

-"Mano velho, Riobaldo, tu pode!"

Tive testa. Pensei um nome feio. O que achassem, achassem! -mas ninguém ia manusear meu ser, para brincadeiras...

-"Mano velho, Riobaldo: tu crê que não merece, mas nós sabemos a tua valia..." -Diadorim retornou. Assim instava, mão erguida. Onde é que os outros, roda-a-roda, denotavam assentimento. -"Tatarana! Tatarana!... - uns pronunciaram; sendo Tatarana um apelido meu, que eu tinha.

Temi. Terçava o grave. Assim, Diadorim dispunha do direito de fazer aquilo comigo. Eu, que sou eu, bati o pé:

-"Não posso, não quero! Digo definitivo! Sou de ser e executar, não me ajusto de produzir ordens.. ."

Tudo parava, por átimo. Todos esperando com suspensão. Senhor conheceu por de-dentro um bando em-pé de jagunços -quando um perigo poja? -sabe os quantos lobos? Mas, eh, não, o pior é que é a calma, uma sisudez das escuras. Não que matem, uns aos outros, ver; mas, a pique de coisinha, o senhor pode entornar seu respeito, sobrar desmoralizado para sempre, neste vale de lágrimas. Tudo rosna. Entremeio, Diadorim se maisfez, avançando passo. Deixou de me medir, vigiou o ar de todos. Aí ele era mestre nisso, de astuto se certificar só com um rabeio ligeiro de mirada - tinha gateza para contador de gado. E muito disse:

-"A pois, então, eu tomo a chefia. O melhor não sou, , oxente, mas porfio no que quero e prezo, conforme vocês todos também. A regra de Medeiro Vaz tem de prosseguir, com tenção! Mas, se algum achar que não acha, o justo a gente isto decide a ponta d'armas..."

64 joão guimarães rosa

Hê, mandacarú! ôi, Diadorim belo feroz! Ah, ele conhecia os caminhares. Em jagunço com jagunço, o poder seco da pessoa é que vale... Muitos, ali, haviam de querer morrer por ser chefes -mas não tinham conseguido nem tempo de se firmar quente nas idéias. E os outros estimaram e louvaram: -"Reinaldo! O Reinaldo!" -foi o aprovo deles. Ah.

Num nu, nisto, nesse repente, desinterno de mim um nego forte se saltou! Não. Diadorim não. Nunca que eu podia consentir. Nanje pelo tanto que eu dele era louco amigo, e concebia por ele a vexável afeição que me estragava, feito um mau amor oculto -por mesmo isso, nimpes nada, -era que eu não podia aceitar aquela transformação: negócio de para sempre receber mando dele, doendo de Diadorim ser meu chefe, nhem, hem? Nulo que eu ia estuchar. Não, hem, clamei -que como um sino desbadala:

-"Discordo."

Todos me olhassem? Não vi, não tremi. Visivo só vi Diadorim -resumo do aspecto e esboço dele para movimentos: as mãos e os olhos; de reguada. Como em relance corri cálculo, de quantos tiros eu tinha para à queima-bucha dar -e uma balazinha, primeira, botada na agulha da automática -ah, eu estava com milho no surrão! De devagar, os companheiros, os outros, não se buliram, tanto esperavam; decerto que saldavam antipatia de mim, repugnados por eu estar seguidamente atrapalhando as decisões, achassem que eu agora não tinha mais direito de parecer, pois a chefia própria eu enjeitara. Quem sabe, será se praziam no poder ver nós dois, Diadorim comigo -que antes corno irmãos, até ali -a gente se estraçalhar nas facas? Torci vontade de matar alguém, para pacificar minha aflição; alguém, algum -Diadorim não -digo. Decerto isso em mim eles perceberam. Os calados. Só o Sesfrêdo, inesperado assim, disse um também: -"Discordo! " Por me estimar, ele me secundava. E o Alaripe, séria pessoa: - "Tem de que. Deixa o Riobaldo razoar..." Endireitei os chifres. Chapei:

-"Vejo, Marcelino Pampa é quem tem de comandar. , Mediante que é o mais velho, e, demais de mais velho, valente, e consabido de ajuizado ! "

Cara de Marcelino Pampa ficou enorme. Do que constei dos outros, concordantes, estabeleci que eu tinha acertado solerte -dei na barra! Mas, Diadorin? De olhos os olhos agarrados: nós dois. Asneira, eu naquela hora supria

grande sertão: veredas 65suscitar alto meu maior bem-querer por Diadorim; mesmo, mesmo, assim mesmo, eu arcava em cru com o desafio, desde que ele brabas se, desde que ele puxasse. Tempo instante, que empurrou morros para passar... Afinal, aí. Diadorim abaixou as vistas. Pude mais do que ele! Se riu, depois de mim. Sempre sendo que falou, firme:

-"Com gosto. Melhor do que Marcelino Pampa não tem nenhum. Não ambicionei poderes..."

Falou como corajoso. E:

-"Tresdito que é a vez de se estar contornados, unidos sem porfiar..." -o Alaripe inteirou.

Amém, todos, voz a voz, aprovavam. Marcelino Pampa então principiou, falou assim:

-"Aceito, por precisão nossa, o que obrigação minha é. Até enquanto não vem algum dos certos, de realce maior: João Goanhá, Alípio Mota, Titão Passos... A tanto, careço do bom conselho de todos que tiverem, segura fiança. Assentes que vamos..."

Sobre mais disse, sem importância, sem noção; pois Marcelino Pampa possuía talentos minguados. Somente pensei que ele estava pondo um peso no lombo, por sacrifício. Ao que, em melhores tempos, aprazia bem capitanear: mas, agora aquela ocasião, a gente por baixos, e essas misérias, qualquer um não havia de desgostar de responsabilidade? Ã, aí observei: como Marcelino Pampa desde o instante expunha outro ar de ser, a sisuda extravagância, soberbo satisfeito! Ser chefe -por fora um pouquinho amarga; mas, por dentro, é rosinhas flores.

Meu era um alívio. Mesmo não duvidei de meu menor valer: alguém lá tem a feição do rosto igualzinha à minha? Eh, de primeiro meu coração sabia bater copiando tudo. Hoje, eu desconheço o arruído rumor das pancadas dele. Diadorim veio para perto de mim, falou coisas de admiração, muito de afeto leal. Ouvi, ouvi, aquilo, copos a fora mel de melhor. Eu precisava. Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto. As pessoas, e as coisas, não são de verdade! E de que é que, a miúde, a gente adverte incertas saudades? Será que, nós todos, as nossas almas já vendemos! Bobéia, minha. E como é que havia de ser possível? Hem?!

Olhe: conto ao senhor. Se diz que, no bando de Antônio Dó, tinha um grado jagunço, bem remediado de posses - Davidão era o nome dele. Vai, um dia, coisas dessas que às vezes acontecem, esse Davidão pegou a ter medo de

66 João guimarães rosamorrer. Safado, pensou, propôs este trato a um outro, pobre dos mais pobres, chamado Faustino: o Davidão dava -a ele dez contos de réis, mas, em lei de caborje-invisível no sobrenatural-chegasse primeiro o destino do Davidão morrer em combate, então era o Faustino quem morria, em vez dele. E o Faustino aceitou, recebeu, fechou. Parece que, com efeito, no poder de feitiço do contrato ele muito não acreditava. Então, pelo seguinte, deram um grande; fogo, contra os soldados do Major Alcides do Amaral, sitiado forte em São Francisco. Combate quando findou, todos os dois estavam vivos, o Davidão e o Faustino. A de ver? Para nenhum deles não tinha chegado a hora-e-dia. Ah, e assim e assim foram, durante os meses, escapos, alteração nenhuma não havendo; nem feridos eles não saíam... Que tal, o que o senhor acha? Pois, mire e veja: isto mesmo narrei a um rapaz de cidade grande, muito inteligente, vindo com outros num caminhão, para pescarem no Rio. Sabe o que o Moço me disse? Que era assunto de valor, para se compor uma estória em livro. Mas que precisava de um final sustante, caprichado. O final que ele daí imaginou, foi um: que, um dia, o Faustino pegava também a ter medo, queria revogar o ajuste! Devolvia o dinheiro. Mas o Davidão não aceitava, não queria, por forma nenhuma. Do discutir, ferveram nisso, ferravam numa luta corporal. A fino, o Faustino se provia na faca, investia, os dois rolavam no chão, embolados. Mas, no confuso, por sua própria mão dele, a faca cravava no coração do Faustino, que falecia...

Apreciei demais essa continuação inventada. A quanta coisa limpa verdadeira uma pessoa de alta instrução não concebe! Aí podem encher este mundo de outros movimentos, sem os erros e voltei os da vida em sua lerdeza de sarrafaçar. A vida disfarça? Por exemplo. Disse isso ao rapaz pescador, a quem sincero louvei. E ele me indagou qual tinha sido o fim, na verdade de realidade, de Davidão e Faustino. O fim? Quem sei. Soube somente só que o Davidão resolveu deixar a jagunçagem -deu baixa do bando, e, com certas promessas, de ceder uns alqueires de terra, e outras vantagens, de mais pagar, conseguiu do Faustino dar baixa também, e viesse morar perto dele, sempre. Mais deles, ignoro. No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso...

A que, o que logo vi, que Marcelino Pampa, por bem de seu dispor, não dava altura. A tento de se acertar nos

grande sertão : veredas 67primeiros rumos de se mexer, ele me chamou, mais João Concliz. -"Os Judas estão aqui mesmo, de nós a umas quinze léguas, e sabem da gente. Deveras atacar, não atacam, com este tempo de rodas chuvas e ribeirões cheios. Mas vão fechando modo de rodear a gente, de menos longe, porque a quantidade deles é à farta... Recurso, que eu acho, é dois: ou se fugir para o chapa dão, enquanto tempo -mas é perder roda esperança e diminuir da vergonha... Ou, então, forçar tudo e experimentar um caminho por entremeio deles: se vai para a outra banda do Rio, caçar João Goanhá e os outros companheiros. ..Mais ainda não sei, quero toda razoável opinião". Assim ele, Marcelino Pampa, disse. -"Mas, se souberem a notícia que Medeiro Vaz morreu, hoje mesmo é capaz que sejam de vir em riba de nós..." -foi o que João Concliz achou; e estava muito certo. Eu não atinava com o que dizer, as confusões dessas horas me encostavam. O que era, na situação, que Medeiro Vaz havia de fazer? E Joca Ramiro? E Sô Candelário? Ao esmo, esses pensamentos em mim. Ai de, foi que reconheci como súcia de homens carece de um& completa cabeça. Comandante é preciso, para aliviar os aflitos, para salvar a idéia da gente de perturbações desconformes. Não sabia, hoje será que sei, a regra de nenhum meio-termo. Sem ação, eu podia gastar ali minha vida inteira, debulhando. Também, logo depois, depois de muitos silêncios e poucas palavras, Marcelino Pampa resolveu que, de tarde, nossa conversa ia ter repetição. Atontados, três.

Dali, fui para perto de Diadorim. -"Riobaldo," - ele mal disse -"você está vendo que não temos remédio. .." Aí, esbarrou, pensou um tempo, com uma mão por cima da outra -"E vocês, que foi que determinaram de se fazer?" -me perguntou. Respondi: -"Hoje de tarde é que se toma decisão, Diadorim. Você está mal satisfeito?" Ele endireitou o corpo. Foi, falou: -"Sei o meu. Cá por mim, isso tudo pouco adianta. Quente quero poder chegar junto dum dos Judas, para terminar!" Eu sabia que ele falava coisas de pelejar por cumprir. Eu tinha mais cansaço, mais tristeza. -"Quem sabe, se... Para ter jeito de chegar perto deles, até se não era melhor..." -assim ele desabafou, em trago; e recolhido num estado de segredo. Por seus grandes olhos, onde aquilo redondeou, cri que armasse agarrar o comando, por meio de acender o bando todo em revolta. Qualquer loucura, semelhante, era a dele. Mas, não; mais disse: -"Foi você, mesmo, Riobaldo, quem governou tudo, hoje. Você escolheu Marcelino Pampa, você decidiu e fez.." Era. Gostei, em cheio,

68 joão guimarães rosade escutar isso, soprante. Ah, porém, estaquei na ponta dum pensamento, e agudo temi, temi. Cada hora, de cada dia, a gente aprende uma qualidade nova de medo!Mas, depois de janta, quando estávamos outra vez reunidos - Marcelino Pampa, eu e João Concliz, -não se teve nem o tempo de principiar. Pelo que ouvimos: um galope, o chegar, o riscar, o desapêio, o xaxaxo de alpercatas. Sendo assim o Feliciano e o Quipes, que traziam um vaqueirinho, escoltado. Que vieram quase correndo. O vaqueirinho não devia de ter mais de uns quinze anos, e as feições dele mudavam -de mestre pavor -"Arte, que este tal passou, às fugas, meio arupa. Pegamos. Aí ele tem grande coisa pra contar..." -e empurraram um pouco o vaqueirinho. De medo - a gente olhava para ele -e de nossos olhos ele se desencostava. Afe, por fim, bebeu gole de ar, e soluceou:

-"É um homem... Só sei... É um homem..."

-"Te acerta, mocinho. Aqui você está livre e salvo. Aonde é que está indo?" -Marcelino,Pampa regrou.

-"É briga enorme... É um homem... Vou indo pra longe, para a casa de meu pai... Ah, é um homem... Ele desceu o Rio Paracatú, numa balsa de burití..."

-"Que foi mais que o homem fez?" -então João Concliz perguntou.

-"Deu fogo... O homem, com mais cinco homens... Avançaram do mato, deram fogo contra os outros. Os outros eram montão, mais duns trinta. Mas fugiram. Largaram três mortos, uns feridos. Escaramuçados. Ei! E estavam a cavalo... O homem e os cinco dele estão a pé. Homem terrível... Falou que vai reformar isto tudo! Vieram pedir sal e farinha, no rancho. Emprestei. Tinham matado um veadinho campeiro, me deram naca de carne..."

-"Qual é que é o nome dele? Fala! Como é que os outros dizem? Aí e que jeito, que semelhança de figura é que ele tem?"

-"Ele? O jeito que é o dele, que ele tem? Em é mais : " baixo do que alto, não é velho, não é Moço... Homem , branco... Veio de Goiás... O que os outros falam e tratam: "Deputado". Desceu o Rio Paracatú numa balsa de burití..."- Estávamos em jejum de briga..." -ele mesmo disse ele e seus cinco deram fogo feito feras. Gritavam de onça e de uivado... Disse: vai remexer o mundo! Desceu o Rio Paracatú numa balsa de burití... Desceram... Nem cavalo eles não têm..."

grande sertão: veredas 69

-"É ele! Mas é ele! Só pode ser..." -aí alguém lembrou. -"E é. E, então, está do nosso lado!" -outro completou. -"Temos de mandar por ele..." -foi a palavra de Marcelino Pampa. -"Onde é que estará? Na Pavoã? Alguém tem de ir lá..." "- É ele... É ver a vida: quem pensava? E é homem danado, zuretado..." "- Está a favor da gente. " E ele sabe guerrear..." E era. Repegava a chuva, trozante, mas mesmo assim o Quipes e Cavalcânti montaram e saíram por ele, da Pavoã no rumo. De certo não achatam fácil, pois até à hora de escurecer não tinham aparecido. Mas: aquele homem, para que o senhor saiba, -aquele homem: era Zé Bebelo. E. na noite, ninguém não dormiu direito, em nosso acampo. De manhã, com uma braça de sol, ele chegou. Dia da abelha branca.

De chapéu desabado, avantes passos, veio vindo, acompanhado de seus cinco cabras. Pelos modos, pelas roupas, aqueles eram gente do Alto Urucúia. Catrumanos dos gerais. Pobres, mas atravessados de armas, e com cheias cartucheiras. Marcelino Pampa caminhou ao encontro dele; seguinte de nosso comandante, nós formávamos. Valia ver. Essas cerimônias.

-"Paz e saúde, chefe! Como passou ?"

-"Como passou, mano?"

Os dois grandes se saudavam. Aí Zé Bebelo reparou em mim: -"Professor, ara viva! Sempre a gente tem de se avistar. .." De nomes e caras de pessoas ele em tempo nenhum se esquecia. Vi que me prezava cordial, não me dando por traidor nem falso. Riu redobrado. De repente, desriu. Refez pé para trás.- "Vim de vez!" -ele disse; disse desafiando, quase.- "Em boa veio, chefe! É o que todos aqui representamos. .." - Marcelino Pampa respondeu.

- "A pois. Salve Medeiro Vaz!. .."

- "Deus com ele, amigo. Medeiro Vaz ganhou repouso. ..- "Aqui soube. Lux eterna..." -e Zé Bebelo tirou o chapéu e se persignou, parando um instante sério, num ar de exemplo, que a gente até se comoveu. Depois, disse:- "Vim cobrar pela vida de meu amigo Joca Ramiro, que a vida em outro tempo me salvou de morte. ..E liquidar com esses dois bandidos, que desonram o nome da Pátria
e este sertão nacional! Filhos da égua..." - e ele

70 João guimarães rosaestava com a raiva tanta, que tudo quanto falava ficava sendo verdade.

-"Pois, então, estamos irmãos... E esses homens?". Os urucuianos não abriram boca. Mas Zé Bebelo rodeou ir todos, nem mando de mão, e declarou forte o seguinte:

-Vim por ordem e por desordem. Este cá e meus exércitos...

Prazer que foi, ouvir o estabelecido. A gente quisesse brigar, aquele homem era em frente, crescia sozinho nas armas.Vez de Marcelino Pampa dizer:

- "Pois assim, amigo, por que é que não combinamos nosso destino? Juntos estamos, juntos vamos."

-"Amizade e combinação, aceito, mano velho. Já, ajuntar, não. Só obro o que muito mando; nasci assim. Só sei ser chefe."

Sobre curto, Marcelino Pampa cobrou de si suas contas. Repuxou testa, demorou dentro dum momento. Circulou os olhos em nós todos, seus companheiros, seus brabos. Nada não se disse. Mas ele entendeu o que cada vontade pedia. Depressa deu, o consumado:

-"E chefe será. Baixamos nossas armas, esperamos vossas ordens..."Com coragem falou, como olhou para a gente outra vez.

-"Acordo!" -eu disse, Diadorim disse, João Concliz disse; todos falaram: -"Acordo!"

Aí Zé Bebelo não discrepou pim de surpresa, parecia até que esperava mesmo aquele voto. -"De todo poder? Todo o mundo lealda ?" -ainda perguntou, ringindo seriedade. Confirmamos. Então ele quase se aprumou nas pontas dos pés, e nos chamou: -"Ao redor de mim, meus filhos. Tomo posse!" Podia-se rir. Ninguém ria. A gente em redor dele, misturando em meio nosso os cinco homens do Urucúia. Adiante: -"Pois estamos: o duro diverso, meu povo. Mas os assassinos de Joca Ramiro vão pagar, com seiscentos-setecentos!..." -ele definiu, apanhando um por um de nós no olhar. -"Assassinos -eles são os Judas. Desse nome, agora, que é o deles..." -explicou João Concliz. -"Arre, vote: dois judas, podemos romper as alelúias! Alelúia! Alelúia! Carne no prato, farinha na cúia!..." - ele aprovou, deu
aquilo feito um viva. Nós respondemos. E assim
era que Zé Bebelo era. Como quando trovejou:
desse trovôo de alto e rasto, dos gerais, entre-

grande sertão: veredas 71mentes antes dos gotejos de chuva esquentada: o trovão afunda largo, pé da gente apalpa a terra. Conforme foi: trovejou de cala-a-boca - e Zé Bebelo tocou um gesto de costas da mão, respeitoso disse: - "Isto é comigo..." Do que se tratava, retorno e conto, ele o seguinte revelou: - "Tudo eu não tinha, com os meus, munição para nem meia-hora..." A gente reconheceu mais a coragem dele. Isto é, qualquer um de nós sabia que aquilo podia ser mentira. Mesmo por isso, somemos, por detrás de tanta papagaiagem um homem carecia de ter valentia muito grande.

A cômodo ele começou, nesse dia, nessa hora; não esbarrou mais. Achou de ir ver o lugar da cova, e as armas e trens de Medeiro Vaz deixava, essas determinou que, o morto não tendo parentes, então para os melhores mais chegados como lembrança ficassem: as carabinas e revólveres, a automática de rompida e ronco, punhal, facão, o capote, o cantil revestido, as capangas e alforjes, as cartucheiras de trespassar. Alguém disse que o cavalo grande, murzelo-mancho, devia de ficar sendo dele mesmo. Não quis. Chamou Marcelino Pampa, a ele fez donativo grave: - "Este animal é nosso, Marcelino, merecido. Porque eu ainda estou para ver outro com igual siso e caráter!" Apertou a mão dele, num toques. Marcelino Pampa dobrou de ar, perturbado. Desse fato em diante, era capaz de se morrer, por Zé Bebelo guardou somente o pelego berbezim, de forrar sela, e um bentinho milagroso, em três baetas confeccionado.

Daí, levou a eito, vendo, examinando, disquirindo. Aprendeu os nomes, de um em um, e em lugar nascido, resumo da vida, quantos combates, e que gostos tinha, qualquer ofício de habilidade. Olhou e contou as pencas de munição e as armas. Repassou os cavalos, prezando os mais bem ferrados e os de aguentadada firmeza. - "Ferraduras, ferraduras! Isto é que é importante..." - vivia dizendo. Repartiu os homens em quatro pelotões - três drongos de quinze, e um de vinte - em cada um ao menos um bom rastreador. - "Carecemos de quatro buzinas de caçador, para os avisos..." - reclamou. Ele mesmo tinha um apito, pendurado do pescoço, que de muito longe se atendia. Para capitanear os drongos, escolheu: Marcelino Pampa, João Concliz e o Fafafa. Pessoalmente, ficou com o maior, o de vinte - nesse figuravam os cinco urucuianos, e eu, Diadorim. Sesfrêdo, o Quipes, Joaquim Beiju, Coscorão, Dimas
Dôido, o Acauã. Mão-de-Lixa, Marruaz, o Credo,
Marimbondo, Rasga-em-Baixo, Jiribibe e Jõe Be-

72 joão guimarães rosaxiguento, dito Alparcatas. Só que, tidos todos repartidos, ainda sobravam nove -serviram para esquadrão adeparte, tomar conta dos burros cargueiros, com petrechos e, mantimentos. O testa deles foi Alaripe, por bom que fosse para tudo ser. Aos esses, mesmo, se comediu obrigação: Quim Queiroz zelava os volumes de balas; o Jacaré exercia de cozinheiro, todo tempo devia de dizer o de comer que precisava ou faltava; Doristino, ferrador dos animais, tratador deles; e os outros ajudavam; mas Raymundo Lé, que entendia de curas e meizinhas, teve cargo de guardar sempre um surrão com remédios. O que, remédio, por ora, não havia nenhum. Mas Zé Bebelo não se atontava: - "Aí em qualquer parte, depois, se compra, se acha, meu filho. Mas, vai apanhando folha e raiz, vai tendo, vai enchendo... O que eu quero é ver o surrão à mão..." O acampamento da gente parecia uma cidade.

Assuntos principais, Zé Bebelo fazia lição, e deduzia ordens. -"Trabucar duro, para dormir bem!" -publicava. Gostadamente: -"Morrendo eu, depois vocês descansam..." -e ria: -"Mas eu não morro. .." Sujeito muito lógico, o senhor sabe: cega qualquer nó. E -engraçado dizer -a gente apreciava aquilo. Dava uma esperança forte. Ao um modo, melhor que tudo é se cuidar miudamente trabalhos de paz em tempo de guerra. O mais eram traquejos, a cavalo, para lá e para cá, ou esbarrados firmes em formatura, então Zé Bebelo perequitava, assoviando, manobrava as patrulhas, vai-te, volta-te. Somente: -"Arre, temos nenhum tempo, gente! Capricha..." Sempre, no fim, por animar, levantava demais o braço: - "Ainda quero passar, a cavalos, levando vocês, em grandes cidades! Aqui o que me faz falta é uma bandeira, e tambor e cornetas, metais mais. ..Mas hei-de! Ah, que vamos em Carinhanha e Montes Claros, ali, no haja vinho... Arranchar no mercado da Diamantina... Eh, vamos no Paracatú-do-Príncipe!..." Que boca, que o apito: apitava.

A sério, ele me chamava para o lado dele, e ia mandando vir outros -Marcelino Pampa, João Concliz, Diadorim, o urucuiano Pantaleão, e o Fafafa, vice-mandantes. Todos tinham de expor o que sabiam daquele gerais território as distâncias em léguas e braças, os váus, o grau de fundo marimbús e dos poços, os mandembes onde se esconder, os mais fartos pastos. Como Zé Bebelo simplificava os olhos, e perguntando e ouvindo avante. Às vezes riscava com ponta duma vara no chão, tudo representado. Ia organizando
aquilo na cabeça. Estava aprendido. Com pouco,
sabia mais do que nós juntos todos. Bem

grande sertão : veredas 73eu conhecia Zé Bebelo, de outros, currais! Bem eu desejasse ter nascido como ele... Aí, saía, por caçar. Sucinto que gostava de caçar; mas estava era sujeitando a exame o morro, discriminando. O mato e o campo -como dois é um par. Veio e foi, figurava, tomava a opinião da gente: -"Com dez homens, naquela altura, e outros dez espalhados na vertente, se podia impedir a passagem de duzentos cavaleiros, pelo resfriado... Com outros alguns, dando a retaguarda, então... " Nest'artes, só nisso ele pensava, quase que. Sendo que expedia, sobre hora, alguém adiante, se informar do meximento dos Judas, trazer notícias vivas. E, homem feliz, feito Zé Bebelo naquele tempo, afirmo ao senhor, nunca não vi.

Diadorim também, que dos claros rumos me dividia. Vinha a boa vingança, alegrias dele, se calando. Vingar, digo ao senhor: é lamber, frio, o que outro cozinhou quente demais. O demônio diz mil. Esse! Vige mas não rege... Qual é o caminho certo da gente? Nem para a frente nem para trás: só para cima. Ou parar curto quieto. Feito os bichos fazem. Os bichos estão só é muito esperando? Mas, quem é que sabe como? Viver... O senhor já sabe: viver é etcétera. "Diadorim alegre, e eu não. Transato no meio da lua. Eu peguei aquela escuridão. E, de manhã, os pássaros, que bem-me-viam todo tal tempo. Gostava de Diadorim, dum jeito condenado; nem pensava mais que gostava, mas aí sabia que já gostava em sempre. Oi, suindara! - linda cor...

Dando o dia, de repente, Zé Bebelo determinou que tudo e tudo fosse pronto, para uma remarcha em exercícios, como geral. Só por festa. Ao que os burrinhos comiam amadrinhados, em bom pasto: -"Menininhos, responsabilidade de cangalhas em vocês, carregando a nossa munição!" -Zé Bebelo mandou. Mas montado, declarou: - "Meu nome d'ora por diante vai ser ah-oh-ah o de Zé Bebelo Vaz Ramiro! Como confiança só tenho em vocês, companheiros, meus amigos: zé-bebelos! A vez chegou: vamos em guerra. Vamos, vamos, rebentar com aquela cambada de patifes!..." Saímos, solertes entes.

Para isso, a lua não era boa. Quem põe praça de cavalhadas, por desbarranco de estradas lamentas, desmancho empapado de chão, a chuva ainda enxaguando? Convinha esperar regras d'água. -"O Rio Paracatú está cheio. .." alguém disse. Mas Zé Bebelo atalhou: -"O São Francisso é maior..." Com ele tudo era assim. extravagável; e não queria conversas de cutilquê. Rompemos. Melava de chover

74 João guimarães rosabaixo, mimelava. Até o derradeiro do momento, parecia que íamos atravessar o Paracatú. Não atravessamos. Tudo aquele homem retinha estudado. Daí, distribuiu as patrulhas. O drongo dele, viemos, pela beira, sempre o Paracatú à mão esquerda. Trovejou, de perturbar. Ele disse: -"Melhor, dou surpresa... Só uma boa surpresa é que rende. Quero é atacar!" A gente ia para o Burití-Pintado. A lá, consta de dez léguas, doze. -"Na hora, cada um deve de ver só um algum judas de cada vez, mirar bem e atirar. O resto maior é com Deus..." -já vai que falava. - "Para um trabalho que se quer, sempre a ferramenta se tem. Só com estes cavalos, só à ligeireza, de lugar para lugar, para a frente e para trás. Sei, mas o principal dos combates vamos dar é bem a pé..." Na beira do rio Soninho, descansamos. Animais de carga, a ponta de mulas, ficaram botados escondidos, numa bocâina na balça. Só três homens tomavam conta. -"Eu é que escolho a hora e o lugar de investir. .." -Zé Bebelo disse. E, num lugar de remanso, passamos o rio Soninho, no escuro, sem ensolvar, bala em boca.

De manhã, de três lados, demos fogo.

Aí Zé Bebelo tinha meditado tudo como um ato, de desenho. Primeiro, João Concliz avançou, com seus quinze, iam fazendo de conta que desprevenidos. Quando os outros vieram, nós todos já estávamos bem amoitados, em pontos bons. Duma banda, então, o Fafafa recruzou, seus cavaleiros: que estavam muito juntos, embolados, do modo por que um bando de cavaleiros ou cavalos dá ar de ser muito maior do que no real é. Todos cavalos ruços ou baios - cor clara também aumenta muito a visão do tamanho deles. Ah, e gritavam. Assaz os judas atiravam mal, discordados, nadinha nem. Aí, de poleiro pego prévio, abrimos nossa calamidade neles. Pessoal do Hermógenes... Não se disse guavái! Supetume! Só bala de aço. -"Dou duelo!... -Ei, tibes. .." Só o quanto de se quebrar galho e rasgar roupagem. Um judas correu errado, do lado onde o Jiribibe estava: triste daquele. -"Ouh!" -foi o que ele fez de contrição perfeita. Outro levantou o corpo um pouco demais. -"Tu! Tu pensa que tem Deus-e-meio?!" -Zé Rebelo disse, depois de derrubar o tal, com um tiro de nhambú, baixo. Outro fugia esperto. -"Tem talento nos pés..." Os que enviei, deixei de numerar, por causa de caridade. Ai deles. Vitória, é isto. Ou o senhor pensa que é em alegre mal, feito numa caçada?

Descansar? Quem disse, não foi ouvido. -"Vou lá deixar essa cambada birbar por aí em sossego?! Bis, mi-

grande sertão: veredas 75nha gente! Vamos neles!" -Zé Bebelo se frigia. Mas o próprio pessoal de João Concliz tinha segurado mão nos cavalos daqueles. -"Toquemos na mão do norte: lá a cara do chão é minha mais..." Não, o caminho era da banda contrária. Tínhamos de cair em riba do grosso da judadas. Por resfriados e atalhos, mesmo com aquela cavalhada adestra, tocamos, tocamos. Estrada capaz de quatro lado a lado. No ôi-Mãe. Lá tem um lajeiro -largo: onde grandes pedras do fundo do chão vêm à flor. Chegamos de sobremão, vagarosinho. Zé Bebelo recomendava, feito rondando quarto de doente ele cheirava até o ar. Sonso parecia um gato. Se vendo que, no inteiro mesmo de sua cabeça, ele antes tudo traçava e guerreava. Seja por um exemplo: havia uma cava grande, o inimigo estava emboscado dos dois lados, nos socavões, nas paredes. Como era que Zé Bebelo já sabia? Orçando longe volta, João Concliz levou seus homens muito adiante de lá, na borda do campo, de recacha. Dado tempo, então, nosso pelotão rastejou para os altos, até chega estávamos por cima dos beiços da cava. Ah e aí o Fafafa veio vindo, descuidado à mostra, com seus cavaleiros -surgiam inocentemente, feito veados para se matar... Mas -hã! -então por de riba da cava desfechamos demos urros e o rifleio, transcruzando nos inferiores: -"Lá vai obra!..." Hê-hê! Deu de abelhas de pau oco: os das socavas entornaram o sangue-frio, demais se assustaram, correndo em fuga maior debaixo de tiros, xingos, às pragas. João Concliz, pois é, o senhor sabe... Urubús puderam voar cererém -uns urubús declarados.

Mas daí voltamos, desatravessando outra vez o Soninho, até onde estava a nossa mulada com munição e o mais. Mesmo viemos negaceando de recuar. Assim era pena, mas carecíamos de flautear desse jeito, sustância nossa não dava para se acabar com aqueles judas de uma vez. Sempre, sempre, para enganar no que vissem, Zé Bebelo variava de se viajar uma hora quase todos juntos, outra hora despedidos espalhados. Ainda, por suma vantagem disso, demos um tiroteio ganho, na fazenda São Serafim, dos diabos!

Rumo a rumo de lá, mas muito para baixo, é um lugar. Tem uma encruzilhada. Estradas vão para as Veredas Tortas -veredas mortas. Eu disse, o senhor não ouviu. Nem torne a falar nesse nome, não. É o que ao senhor lhe peço. Lugar não onde. Lugares assim são simples -dão nenhum aviso. Agora: quando passei por lá, minha mãe não tinha rezado -por mim naquele momento?

76 João guimarães rosa

Assim, feito no Paredão. Mas a água só é limpa é nas cabeceiras. O mal ou o bem, estão é em quem faz; não é no efeito que dão. O senhor ouvindo seguinte. Me entende. O Paredão existe lá, Senhor vá, senhor veja. É um arraial. Hoje ninguém mora mais. As casas vazias. Tem até sobrado. Deu capim no telhado da igreja, a gente escuta a qualquer entrar o borbolo rasgado dos morcegos. Bicho que guarda muitos frios no corpo. Boi vem do campo, se esfrega naquelas paredes. Deitam. Malham. De noitinha, os morcegos pegam a recobrir os bois com lencinhos pretos. Rendas pretas defunteiras. Quando se dá um tiro, os cachorros latem, forte tempo. Em roda a parte é desse jeito. Mas aqueles cachorros hoje são do mato, têm de caçar seu de-comer. Cachorros que já lamberam muito sangue. Mesmo, o espaço é tão calado, que ali passa o sussurro de meia-noite às nove horas. Escutei um barulho. Tocha de carnaúba estava alumiando. Não tinha ninguém restado. Só vi um papagaio manso falante, que esbagaçava com o bico algum trem. Esse, vez em quando, para dormir ali voltava? E eu não revi Diadorim. Aquele arraial tem um arruado só: é a rua da guerra... O demônio na rua, no meio do redemunho... O senhor não me pergunte nada. Coisas dessas não se perguntam bem.

Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. Mas não é por - disfarçar, não pense. De grave, na lei do comum, disse ao senhor quase tudo. Não crio receio. O senhor é homem de pensar o dos outros como sendo o seu, não é criatura de pôr denúncia. E meus feitos já revogaram, prescrição dita. Tenho meu respeito firmado. Agora, sou anta empoçada, ninguém me caça. Da vida pouco me resta -só o deo-gratias; e o troco. Bobéia. Na feira de São João Branco, um homem andava falando: - "A pátria não pode nada com a velhice..." Discordo. A pátria é dos velhos, mais. Era um homem maluco, os dedos cheios de anéis velhos sem valor, as pedras retiradas - ele dizia: aqueles todos anéis davam até choque elétrico... Não. Eu estou contando assim, porque é o meu jeito de contar. Guerras e batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte, reverte. Os revoltosos depois passaram por aqui, soldados de Prestes, vinham de Goiás, reclamavam posse de todos animais de sela. Sei que deram fogo, na barra do Urucúia, em São Romão, aonde aportou um vapor do Governo, cheio de tropas da Bahia. Muitos anos
adiante, um roceiro vai lavrar um pau, encontra
balas cravadas. O que vale, são outras coisas.
A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento,

grande sertão : veredas 77uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era corno se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe.

Mire veja: aquela moça, meretriz, por lindo nome Nhorinhá, filha de Ana Duzuza: um dia eu recebi dela urna carta: carta simples, pedindo notícias e dando lembranças, escrita, acho que, por outra alheia mão. Essa Nhorinhá tinha lenço curto na cabeça, feito crista de anú-branco. Escreveu, mandou a carta. Mas a carta gastou uns oito anos para me chegar; quando eu recebi, eu já estava casado. Carta que se zanzou, para um lado longe e para o outro, nesses sertões, nesses gerais, por tantos bons préstimos, em tantas algibeiras e capangas. Ela tinha botado por fora só: Riobaldo que está com Medeiro Vaz. E veio trazida por tropeiros e viajores, recruzou tudo. Quase não podia mais se ler, de tão suja dobrada, se rasgando. Mesmo tinham enrolado noutro papel, em canudo, com linha preta de carretel. Uns não sabiam mais de quem tinham recebido aquilo, último, que me veio com ela, quase por engano de acaso, era um homem que, por medo da doença do toque, ia levando seu gado de volta dos gerais para a caatinga, logo que chuva chovida. Eu já estava casado. Gosto de minha mulher, sempre gostei, e hoje mais. Quando conheci de olhos e mãos essa Nhorinhá, gostei dela só o trivial do momento. Quando ela escreveu a carta, ela estava gostando de mim, de certo; e aí já estivesse morando mais longe, magoa no São Josezinho da Serra -no indo para o Riacho-das-Almas e vindo do Morro dos ofícios. Quando recebi a carta, vi que estava gostando dela, de grande amor em lavaredas; mas gostando de todo tempo, até daquele tempo pequeno em que com ela estive, na Aroeirinha, e conheci, concernente amor. Nhorinhá, gosto bom ficado em meus olhos e minha boca. De lá para lá, os oito anos se baldavam. Nem estavam. Senhor subentende o que isso é? A verdade que, em minha memória, mesmo, ela tinha aumentado de ser mais linda. De certo, agora não gostasse mais de mim, quem sabe até tivesse morrido... Eu sei que isto que estou dizendo é dificultoso, muito entrançado. Mas o senhor vai avante. Invejo é a instrução que o senhor

78 João guimarães rosatem. Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente.Queria entender do medo e a coragem, e a gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe!

Sendo isto. Ao dôido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas -e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção.

Foi um fato que se deu, um dia, se abriu. O primeiro. Depois o senhor verá por quê, me devolvendo minha razão.

Se deu há tanto, faz tanto, imagine: eu devia de estar com uns quatorze anos, se. Tínhamos vindo para aqui - circunstância de cinco léguas -minha mãe e eu. No porto do Rio-de-Janeiro nosso, o senhor viu. Hoje, lá é o porto do seo Joãozinho, o negociante. Porto, lá como quem diz, porque outro nome não há. Assim sendo, verdade, que se chama, no sertão: é uma beira de barranco, com uma venda, uma casa, um curral e um paiol de depósito. Cereais. Tinha até um pé de roseira. Rosmes!... Depois o senhor vá, verá. Pois, naquela ocasião, já era quase do jeito. O de-Janeiro, dali abaixo meia-légua, entra no São Francisco, bem reto ele vai, formam uma esquadria. Quem carece, passa o de-Janeiro em canoa-ele é estreito, não estende de largura as trinta braças. Quem quer bandear a cômodo o São Francisco, também principia ali a viagem. O porto tem de ser naquele ponto, mais alto, onde não dá febre de maresia. A descida do barranco é indo por a-pique, melhoramento não se pode pôr, porque a cheia vem e tudo escavaca. O São Francisco represa o de-Janeiro, alto em grosso, às vezes já em suas primeiras águas de novembro. Dezembro dando, é certo. Todo o tempo, as canoas ficam esperando, com as correntes presas na raiz descoberta dum pau-d'óleo, que tem. Tinha também umas duas ou três gameleiras, de outrora, tanto recordo. Dá dó, ver as pessoas descerem na lama
aquele barranco, carregando sacos pesados,
muita vez. A vida aqui é muito repagada, o senhor

grande sertão : veredas 79concorde. Outro, meu tempo, então, o que é que não havia de ser? Pois tinha sido que eu acabava de sarar duma doença, e minha mãe feito promessa para eu cumprir quando ficasse bom: eu carecia de tirar esmola, até perfazer um tanto -metade para se pagar uma missa, em alguma; igreja, metade para se pôr dentro duma cabaça bem tapada e breada, que se jogava no São Francisco, a fim de ir, Bahia abaixo, até esbarrar no Santuário do Santo Senhor Bom-Jesus da Lapa, que na beira do rio tudo pode. Ora, lugar de tirar esmola era no porto. Mãe me deu uma sacola. Eu ia, todos os dias. E esperava por lá, naquele parado, raro que alguém vinha. Mas eu gostava, queria novidade quieta para meus olhos. De descer o barranco, me dava receio. Mas espiava as cabaças para bóia de anzol, sempre dependuradas na parede do rancho.

Terceiro ou quarto dia, que lá fui, apareceu mais gente. Dois ou três homens de fora, comprando alqueires : de arroz. Cada saco amarrado com broto de burití, a folha nova-verde e amarela pelo comprido meio a meio. . Arcavam com aqueles sacos, e passavam, nas canoas, para o outro lado do de-Janeiro. Lá era, como ainda hoje é, mata alta. Mas, por entre as árvores, se podia ver um carro-de-bois parado, os bois que mastigavam com escassa, baba, indicando vinda de grandes distâncias. Daí, o senhor veja: tanto trabalho, ainda, por causa de uns metros de água mansinha, só por falta duma ponte. Ao que, mais, no carro-de-bois, levam muitos dias, para vencer o que em horas o senhor em seu jipe resolve. Até hoje é assim, por borco.

Aí pois, de repente, vi um menino, encostado numa árvore, pitando cigarro. Menino mocinho, pouco menos do que eu, ou devia de regular minha idade. Ali estava, com um chapéu-de-couro, de sujigola baixada, e se ria para mim. Não se mexeu. Antes fui eu que vim para perto dele. Então ele foi me dizendo, com voz muito natural, que aquele comprador era o tio dele, e que moravam num lugar chamado Os-Porcos, meio-mundo diverso, onde não tinha nascido. Aquilo ia dizendo, e era um menino bonito, claro, com a testa alta e os olhos aos-grandes, verdes. Muito tempo mais tarde foi que eu soube que esse lugarim Os-Porcos existe de se ver, menos longe daqui, nos gerais de Lassance.

-"Lá é bom?" -perguntei. -"Demais..." -ele me respondeu; e continuou explicando: -"Meu tio planta de tudo. Mas arroz este ano não plantou, porque enviuvou

80 João guimarães rosade morte de minha tia..." Assim parecesse que tinha vergonha, de estarem comprando, aquele arroz, o senhor veja.

Mas eu olhava esse menino, com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achava que ele era muito diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma, muito leve, muito aprazível. Porque ele falava sem mudança, nem intenção, sem sobêjo de esforço, fazia de conversar uma conversinha adulta e antiga. Fui recebendo em mim um desejo de que ele não fosse mais embora, mas ficasse, sobre as horas, e assim como estava sendo, sem parolagem miúda, sem brincadeira -só meu companheiro amigo desconhecido. Escondido enrolei minha sacola, aí tanto, mesmo em fé de promessa, tive vergonha de estar esmolando. Mas ele apreciava o trabalho dos homens, chamando para eles meu olhar, com um jeito de siso! Senti, modo meu de menino, que ele também se simpatizava a já comigo.

A ser que tinha dinheiro de seu, comprou um quarto de queijo, e um pedaço de rapadura. Disque ia passear em canoa. Não pediu licença ao tio dele. Me perguntou se eu vinha. Tudo fazia com um realce de simplicidade, tanto desmentindo pressa, que a gente só podia responder que sim ele me deu a mão, para me ajudar a descer o barranco.

As canoas eram algumas, elas todas compridas, como as de hoje, escavacadas cada qual em tronco de pau de árvore. Uma estava ocupada, apipada passando as sacas de arroz, e nós escolhemos a melhor das outras, quase sem água nem lama nenhuma no fundo. Sentei lá dentro, de pinto em ovo ele se sentou em minha frente, estávamos virados um para o outro. Notei que a canoa se equilibrava mal, balançando no estado do rio. O menino tinha me dado a mão para descer o barranco. Era uma mão bonita, macia e quente, agora eu estava vergonhoso, perturbado. O vacilo da canoa me dava um aumentante receio. Olhei: aqueles esmerados esmartes olhos, botados verdes, de folhudas pestanas, luziam um efeito de calma, que até me repassasse. Eu não sabia nadar. O remador, um menino também, da laia da gente, foi remando. Bom aquilo não era, tão pouca firmeza. Resolvi ter brio. Só era bom por estar perto do menino. Nem em minha mãe eu não pensava. Eu estava indo a meu esmo.

Saiba o senhor, o de-Janeiro é de águas claras. E é rio cheio de bichos cágados. Se olhava a lado, se via um vivente desses -em cima de pedra, quentando sol, ou

grande sertão : vereda 81nadando descoberto, exato. Foi o menino quem me mostrou E chamou minha atenção para o mato da beira em pé paredão, feito à régua regulado. -"As flores:.." - ele prezou. No alto eram muitas flores, subitamente vermelhas de olho-de-boi e de outras trepadeiras, e as roxas, do mucunã que é um feijão bravo; porque se estava no mês de maio, digo -tempo de comprar arroz, quem não pôde plantar. Um pássaro cantou. Nhambú? E periquitos, bandos, passavam voando por cima de nós. Não me esqueci de nada, o senhor vê. Aquele menino, como eu ia poder deslembrar? Um papagaio vermelho: -"Arara for?" -ele me disse. E - quê-quê-quê? -o araçarí perguntava. ele, o menino, era dessemelhante, já disse, não dava minúcia de pessoa outra nenhuma. Comparável um suave de ser, mas asseado e forte -assim se fosse um cheiro bom sem cheiro nenhum sensível - o senhor represente. As roupas mesmas não tinham: nódoa nem amarrotado nenhum, não fuxicavam. A bem dizer, ele pouco falasse. Se via que estava apreciando o ar do tempo, calado e sabido, e tudo nele era segurança em si, Eu queria que ele gostasse de mim.

Mas, com pouco, chegávamos no do-Chico. O senhor surja: é de repentemente, aquela terrível água de largura: imensidade. Medo maior que se tem, é de vir canoando num ribeirãozinho, e dar, sem espera, no corpo dum rio grande. Até pelo mudar. A feiúra com que o São Francisco puxa, se moendo todo barrento vermelho, recebe para si o de-Janeiro, quase só um rego verde só. -"Daqui vamos voltar?" -eu pedi, ansiado. O menino não me olhou - porque já tinha estado me olhando, como estava. -"Para que ?" -ele simples perguntou, em descanso de paz. O canoeiro, que remava, em pé, foi quem se riu, decerto de mim. Aí o menino mesmo se sorriu, sem malícia e sem bondade. Não piscava os olhos. O canoeiro, sem seguir resolução, varejava ali, na barra, entre duas águas, menos fundas, brincando de rodar mansinho, com a canoa passeada. Depois, foi entrando no do-Chico, na beirada, para O rumo de acima. Eu me apeguei de olhar o mato da margem. Beiras sem praia, tristes, tudo parecendo meio podre, a deixa, lameada ainda da cheia derradeira, o senhor sabe: quando o do-Chico sobe os seis ou os onze metros. E se deu que o remador encostou quase a canoa nas canaranas, e se curvou, queria quebrar um galho de maracujá? O mato. Com o mau jeito, a canoa desconversou, o menino também tinha se levantado. Eu disse um grito. -"Tem nada não..." -ele falou, até meigo muito. -"Mas,

82 joão guimarães rosaentão, vocês fiquem sentados..." - eu me queixei. ele se sentou. Mas, sério naquela sua formosa simpatia, deu ordem ao canoeiro, com uma palavra só, firme mas sem vexame: -"Atravessa!" O canoeiro obedeceu.

Tive medo. Sabe? Tudo foi isso: tive medo! Enxerguei os confins do rio, do outro lado. Longe, longe, com que prazo se ir até lá? Medo e vergonha. A aguagem bruta, traiçoeira -o rio é cheio de baques, modos moles, de esfrio, e uns sussurros de desamparo. Apertei os dedos no pau da canoa. Não me lembrei do Caboclo-d' Água, não me lembrei do perigo que é a "onça-d'água", se diz -a ariranha -essas desmergulham, em bando, e bécam a gente: rodeando e então fazendo a canoa virar, de estudo. Não pensei nada. Eu tinha o medo imediato. E tanta claridade do dia. O arrojo do rio, e só aquele estrape, e o risco extenso d'água, de parte a parte. Alto rio, fechei os olhos. Mas eu tinha até ali agarrado uma esperança. Tinha ouvido dizer que, quando canoa vira, fica boiando, e é bastante a gente se apoiar nela, encostar um dedo que seja, para se ter tenência, a constância de não afundar, e aí ir, seguindo, até sobre se sair no seco. Eu disse isso. E o canoeiro me contradisse: -"Esta é das que afundam inteiras. É canoa de peroba. Canoa de peroba e de pau-d'óleo não sobrenadam..." Me deu uma tontura. O ódio -que eu quis: ah, tantas canoas no porto, boas canoas boiantes, de faveira ou tamboril, de imburana, vinhático ou cedro, e a gente tinha escolhido aquela... Até fosse crime, fabricar dessas, de madeira burra! A mentira fosse -mas eu devo de ter arregalado dôidos olhos. Quieto, composto, confronte, o menino me via. -"Carece de ter coragem..." -ele me disse. Visse que vinham minhas lágrimas? Doí de responder: -"Eu não sei nadar..." O menino sorriu bonito. Afiançou: -"Eu também não sei." Sereno, sereno. Eu vi o rio. Via os olhos dele, produziam uma luz. -"Que é que a gente sente, quando se tem medo?" -ele indagou, mas não estava remoqueando; não pude ter raiva. -"Você nunca teve medo?" -foi o que me veio, de dizer. Ele respondeu: -"Costumo não..." - e, passado o tempo dum meu suspiro: -"Meu pai disse que não se deve de ter. .." Ao que meio pasmei. Ainda ele terminou: - " ...Meu pai é o homem mais valente deste mundo." Ai o bambalango das águas, a avançação enorme roda-a-roda - o que até hoje, minha vida, avistei, de maior, foi aquele rio. Aquele, daquele dia. As remadas que se escutavam, do canoeiro,
a gente podia contar, por duvidar se não satisfaziam
termo. -"Ah, tu: tem medo não nenhum ?" - ao

grande sertão : veredas 83canoeiro o menino perguntou, com tom. -"Sou barranqueiro!" -o canoeirinho tresdisse, repontando de seu orgulho. De tal o menino gostou, porque com a cabeça aprovava. Eu também. O chapéu-de-couro que ele tinha era quase novo. Os olhos, eu sabia e hoje ainda mais sei, pegavam um escurecimento duro. Mesmo com a pouca idade que era a minha, percebi que, de me ver tremido todo assim, o menino tirava aumento para sua coragem. Mas eu aguentei o aque do olhar dele. Aqueles olhos então foram ficando bons, retomando brilho. E o menino pôs a mão na minha. Encostava e ficava fazendo parte melhor da minha pele, no profundo, désse a minhas carnes alguma coisa. Era uma mão branca, com os dedos dela delicados. Você também é animoso..." -me disse. Amanheci minha aurora. Mas a vergonha que eu sentia agora era de outra qualidade. Arre vai, o canoeiro cantou, feio, moda de copIa que gente barranqueira usa: "... Meu Rio de São Francisco, nessa maior turvação: vim te dar um gole d'água, mas pedir tua benção " Aí, o desejado, arribamos na outra beira, a de lá.

Ao ver, o menino mandou encostar; só descemos. - "Você não arreda daqui, fica tomando conta!" -ele falou para o canoeiro, que seguiu de cumprir aquela autoridade, desde que amarrou a corrente num pau-pombo. Aonde o menino queria ir? Sofismei, mas fui andando, fomos, na vargem, no meio-avermelhado do capim-pubo. Sentamos, por fim, num lugar mais salientado, com pedras, rodeado por áspero bamburral. Sendo de permanecer assim, sem prazo, isto é, o quase calados, somente. Sempre os mosquitinhos era que arreliavam, o vulgar. -"Amigo, quer de comer? Está com fome?" -ele me perguntou. E me deu a rapadura e o queijo. Ele mesmo, só tocou em miga. Estava pitando. Acabou de pitar, apanhava talos de capim-capivara, e mastigava; tinha gosto de milho-verde, é dele que a capivara come. Assim quando me veio vontade de urinar, e eu disse, ele determinou: -"Há-de, vai ali atrás, longe de mim, isso faz..." Mais não conversasse; e eu reparei, me acanhava, comparando como eram pobres as minhas roupas, junto das dele.

Antojo, então, por detrás de nós, sem avisos, apareceu a cara de um homem! As duas mãos dele afastavam os ramos do mato, me deu um susto somente. Por certo algum trilho passava perto por ali, o homem escutara nossa conversa. À fé, era um rapaz, mulato, regular uns dezoito ou vinte anos; mas altado, forte, com as feições muito bruta.

84 ioão guimarães rosaDebochado, ele disse isto: -"Vocês dois, uê, hem?! Que é que estão fazendo?..." Aduzido fungou, e, mão no fechado da outra, bateu um figurado indecente. Olhei para o menino. Esse não semelhava ter tomado nenhum espanto, surdo sentado ficou, social com seu prático sorriso. -"Hem, hem? E eu? Também quero!" -o mulato veio insistindo. E, por aí, eu consegui falar alto, contestando, que não estávamos fazendo sujice nenhuma, estávamos era espreitando as distâncias do rio e o parado das coisas. Mas, o que eu menos esperava, ouvi a bonita voz do menino dizer: -"Você, meu nego? Está certo, chega aqui..." A fala, o jeito dele, imitavam de mulher. Então, era aquilo? E o mulato, satisfeito, caminhou para se sentar juntinho dele.

Ah, tem lances, esses - se riscam tão depressa, olhar da gente não acompanha. Urutú dá e já deu o bote? Só foi assim. Mulato pulou para trás, ô de um grito, gemido urro. Varou o mato, em fuga, se ouvia aquela corredoura. O menino abanava a faquinha nua na mão, e nem se ria. Tinha embebido ferro na coxa do mulato, ponta rasgando fundo. A lâmina estava escorrida de sangue ruim. Mas o menino não se aluía do lugar. E limpou a faca no capim, com todo capricho. -"Quicé que corta..." -foi só o que disse, a si dizendo. Tornou a pôr na bainha.

Meu receio não passava. O mulato podia voltar, ter ido buscar uma foice, garrucha, a reunir companheiros; de nós o que seria, daí a mais um pouco? Ao menino ponderei isso, encarecendo que a gente fosse logo embora. -"Carece de ter coragem. Carece de ter muita coragem. .." -ele me moderou, tão gentil. Me alembrei do que antes ele tinha falado, de seu pai. Indaguei: -"Mas, então, você mora é com seu tio?" Aí ele se levantou, me chamando para voltarmos. Mas veio demorão, vagarosinho até aonde a canoa. E não olhava para trás. Não, medo do mulato, nem de ninguém, ele não conhecia.

Tem de tudo neste mundo, pessoas engraçadas: o remadorzinho estava dormindo espichado dentro da canoa, -com os seus mosquitos por cima e a camisa empapada de suor de sol. Se alegrou com o resto da rapadura e do queijo, nos trouxe remando, no meio do rio até mais cantava. Dessa volta, não lhe dou desenho -tudo igual, igual. Menos que, por vez, me pareceu depressa demais. -"Você é valente, sempre?" -em hora eu perguntei. O menino estava molhando as mãos na água vermelha, esteve tempo pensando. Dando fim, sem me encarar, declarou assim: -grande sertão: veredas 85"Sou diferente de todo o mundo. Meu pai disse que eu careço de ser diferente, muito diferente..." E eu não tinha medo mais. Eu? O sério pontual é isto, o senhor escute, me escute mais do que eu estou dizendo e escute desarmado. O sério é isto, da estória toda -por isto foi que: a estória eu lhe contei -: eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita coisa importante falta nome.

Minha mãe estava lá no porto, por mim. Tive de ir com ela, nem pude me despedir direito do Menino. De longe, virei, ele acenou com a mão, eu respondi. Nem sabia o nome dele. Mas não carecia. Dele nunca me esqueci, depois, tantos anos todos.

Agora, que o senhor ouviu, perguntas faço. Por que foi que eu precisei de encontrar aquele Menino? Toleima, eu sei. Dou, de. O senhor não me responda. Mais, que coragem inteirada em peça era aquela, a dele? De Deus, do demo? Por duas, por uma, isto que eu vivo pergunta de saber, nem o compadre meu Quelemém não me ensina. E o que era que o pai dele tencionava? Na ocasião, idade minha sendo aquela, não dei de mim esse indagado. Mire veja: um rapazinho, no Nazaré, foi desfeiteado, e matou um homem. Matou, correu em casa. Sabe o que o pai dele temperou? -"Filho, isso é a tua maioridade. Na velhice, já tenho defesa, de quem me vingue. .." Bolas, ora. Senhor vê, o senhor sabe. Sertão é o penal, criminal. Sertão é onde homem tem de ter a dura nuca e mão quadrada. Mas, onde é bobice a qualquer resposta, é aí que a pergunta se pergunta. Por que foi que eu conheci aquele Menino? O senhor não conheceu, compadre meu Quelemém não conheceu, milhões de milhares de pessoas não conheceram. O senhor pense outra vez, repense o bem pensado: para que foi que eu tive de atravessar o rio, defronte com o Menino? O São Francisco cabe sempre aí, capaz, passa. O Chapadão é em sobre longe, beira até Goiás, extrema. Os gerais desentendem de tempo. Sonhação-acho que eu tinha de aprender a estar alegre e triste juntamente, depois, nas vezes em que no Menino pensava, eu acho que. Mas, para que? Porque? Eu estava no porto do de-Janeiro, com minha capanguinha na mão, ajuntando esmolas para o Senhor Bom-Jesus, no dever de pagar promessa feita por minha mãe, para me sarar de uma doença grave. Deveras se vê que o viver da gente não é tão cerzidinho assim? Artes que foi que fico pensando: por aí, Zé Bebelo um tanto sabia disso, mas sabia sem saber, e saber não queria;
como Medeiro Vaz, como Joca Ramiro; como
compadre meu Quelemém, que

86 joão guimarães rosaque viaja diverso caminhar. Ao que? Não me dê, dês. Mais hoje, mais amanhã, quer ver que o senhor põe uma resposta. Assim, o senhor já me compraz. Agora, pelo jeito de ficar calado alto, eu vejo que o senhor me divulga.

Adiante? Conto. O seguinte é simples. Minha mãe morreu -apenas a Bigrí, era como ela se chamava. Morreu, num dezembro chovedor, ai foi grande a minha tristeza. Mas uma tristeza que todos sabiam, uma tristeza do meu direito. De desde, até hoje em dia, a lembrança de minha mãe às vezes me exporta. Ela morreu, como a minha vida mudou para uma segunda parte. Amanheci mais. De herdado, fiquei com aquelas miserinhas -miséria quase inocente -que não podia fazer questão: lá larguei a outros o pote, a bacia, as esteiras, panela, chocolateira, uma caçarola bicuda e um alguidar; somente peguei minha rede, uma imagem de santo de pau, um caneco-de-asa pintado de flores, uma fivela grande com ornados, um cobertor de baeta e minha muda de roupa. Puseram para mim tudo em trouxa, como coube na metade dum saco. Até que um vizinho caridoso cumpriu de me levar, por causa das chuvas- numa viagem durada de seis dias, para a Fazenda São Gregório, de meu padrinho Selorico Mendes, na beira da estrada boiadeira, entre o rumo do Curralinho e o do Bagre, onde as serras vão descendo. Tanto que cheguei lá, meu padrinho Selorico Mendes me aceitou com grandes bondades. Ele era rico e somítico, possuía três fazendas-de-gado. Aqui também dele foi, a maior de todas.

-"De não ter conhecido você, estes anos todos, purgo meus arrependimentos..." -foi a sincera primeira palavra que ele me disse, me olhando antes. Levei dias pensando que ele não fosse de juizo regulado. Nunca falou em minha mãe. Nas coisas de negocio e uso, no lidante, também quase não falava. Mas gostava de conversar, contava casos. Altas artes de jagunços -isso ele amava constante -histórias.

-Ah, a vida vera é outra, do cidadão do sertão. Política! Tudo política, e potentes chefias. A pena, que aqui já é terra avinda concorde, roncice de paz, e sou homem particular. Mas, adiante, por aí arriba, ainda fazendeiro graúdo se reina mandador -todos donos de agregados valentes, turmas de cabras do trabuco e na carabina escopetada! Domingos Touro, no Alambiques. Major Urbano na Macaçá, os Silva Salles na Crondeúba, no Vau-Vau dona Próspera Blaziana. Dona Adelaide no, Campo-Redondo, Simão
Avelino na Barra-da-Vaca, Mozar Vieira no São João do
Canastrão, o Coronel Camucim nos

grande sertão : veredas 87Arcanjos, comarca de Rio Pardo; e tantos, tantos. Nisto que na extrema de cada fazenda some e surge um camarada, de sentinela, que sobraça o pau-de-fogo e vigia feito onça que come carcaça. Ei. Mesma coisa no barranco do rio, e se descer esse São Francisco, que aprova, cada lugar é só de um grande senhor, com sua família geral, seus jagunços mil, ordeiros: ver São Francisco da Arrelia, Januária, Carinhanha, Urubú, Pilão Arcado, Chique-Chique e Sento-Sé."

Demais falasse, tendo conhecido o Neco, se lembrava de quando Neco forçou Januária e Carinhanha, nas eras do ano de 79: tomou todos os portos -Jatobá, Malhada e Manga -fez como quis; e pôs séde de suas fortes armas no arraial do Jacaré, que era a terra dele. -"Estive lá, com carta firmada pelo Capitão Severiano Francisco de Magalhães, que era companheiro combinado do Neco. O pessoal que eles numeravam em guerra comprazia uma babilônia. Botavam até barcas, cheias de homens com bacamartes, cruzando para baixo e para cima o rio, de parte a parte. Dia e noite, a gente ouvia gritos e tiros. Cavalaria de jagunços galopando, saindo para distâncias marcadas. Abriam festa de bomba-real e foguetório, quando entravam numa cidade. Mandavam tocar o sino da igreja. Arrombavam a cadeia, soltando os presos, arrancavam o dinheiro em coletoria, e ceiavam em Casa-da-Câmara..."

Meu padrinho Selorico Mendes era muito medroso. Contava que em tempos tinha sido valente, se gabava, goga. Queria que eu aprendesse a atirar bem, e manejar porrete e faca. Me deu logo um punhal, me deu uma garrucha e uma granadeira. Mais tarde, me deu até um facão enterçado, que tinha mandado forjar para próprio, quase do tamanho de espada e em formato de folha de gravatá. -"Sentei em mesa com o Neco, bebi vinho, almocei... Debaixo da chefia dele, paravam uns oitocentos brabos, só obedeciam e rendiam respeito." Meu padrinho, hóspede do Neco; de recontar isso ele sempre se engrandecia. Naquela dita ocasião, rodas as pessoas importantes tinham fugido da Januária, desamparadas de poder-de-lei, foram esperar melhor sorte em Pedras-de-Maria-da-Cruz. -"Neco? Ah! Mandou mais que Renovato, ou o Lióbas, estrepoliu mais do que João Brandão e os Filgueiras..." E meu padrinho me mostrou um papel, com escrita de Neco -era recibo de seis ancorotes,com pólvora e uma remessa de iodureto - a assinatura 'rezava assim: Manoel Tavares de Sã.

Mas eu não sabia ler. Então meu padrinho teve uma decisão: me enviou para o Curralinho, para ter escola e

88 joão guimarães rosamorar em casa de um amigo dele, Nhô Maroto, cujo Gervásio Lé de Ataíde era o verdadeiro nome social. Bom homem. Lá eu não carecia de trabalhar, de forma nenhuma, porque padrinho Selorico Mendes acertava com Nhô Maroto de pagar todo fim de ano o assentamento da tença e impêndio, até de botina e roupa que eu precisasse. Eu comia muito, a despesa não era pequena, e sempre gostei do bom e do melhor. A ser que, alguma vez, Nhô Maroto me pedia um ou outro serviço, usando muito bico de palavreado, me agradando e dizendo que estimava como um favor. Nunca neguei a ele meus pés e mãos, e mesmo não era o nenhum trabalho notável. Vai, acontece, ele me disse: -"Baldo, você carecia mesmo de estudar e tirar carta-de-doutor, porque para cuidar do trivial você jeito não tem. Você não é habilidoso." Isso que ele me disse me impressionou, que de seguida formei em pergunta, ao Mestre Lucas. Ele me olhou, um tempo -era homem de tão justa regra, e de tão visível correto parecer, que não poupava ninguém: às vezes teve dia de dar em todos os meninos com a palmatória; e mesmo assim nenhum de nós não tinha raiva dele. Assim Mestre Lucas me respondeu: -"É certo. Mas o mais certo de tudo é que um professor de mão-cheia você dava..." E, desde o começo do segundo ano, ele me determinou de ajudar no corrido da instrução, eu explicava aos meninos menores as letras e a tabuada.

Curralinho era lugar muito bom, de vida contentada. Com os rapazinhos de minha idade, arranjei companheirice. Passei lá esses anos, não separei saudade nenhuma, nem com o passado não somava. Aí, namorei falso, asnaz, ah essas meninas por nomes de flores. A não ser a Rosa'uarda -moça feita, mais velha do que eu, filha de negociante forte, seo Assis Wababa, dono da venda O Primeiro Barateiro da Primavera de São José -ela era estranja, turca, eles todos turcos, armazém grande, casa grande, seo Assis Wababa de tudo comerciava. Tanto sendo bizarro atencioso, e muito ladino, ele me agradava, dizia que meu padrinho Selorico Mendes era um freguesão, diversas vezes me convidou para almoçar em mesa. O que apreciei -carne moída com semente de trigo, outros guisados, recheio bom em abobrinha ou em folha de uva, e aquela moda de azedar o quiabo -supimpas iguarias. Os doces, também. Estimei seo Assis Wababa, a mulher dele, dona Abadia, e até os meninos, irmãozinhos de Rosa'uarda, mas com tamanha diferença de idade.
Só o que me invocava era a linguagem garganteada
que falavam uns com uns, a aravia. Assim

grande sertão : veredas 89mesmo afirmo que a Rosa'uarda gostou de mim, me ensinou as primeiras bandalheiras, e as completas, que juntos fizemos, no fundo do quintal, num esconso, fiz com muito anseio e deleite. Sempre me dizia uns carinhos turcos, e me chamava de: -"Meus olhos." Mas os dela era que brilhavam exaltados, e extraordinários pretos, duma formosura mesmo singular. Toda a vida gostei demais de estrangeiro.

Hoje é que reconheço a forma do que meu padrinho muito fez por mim, ele que criara amparado amor ao seu dinheiro, e que tanto avarava. Pois, várias viagens, ele veio ao Curralinho, me ver -na verdade, também, ele aproveitava para tratar de vender bois e mais outros negócios -e trazia para mim caixetas de doce de burití ou de araticúm, requeijão e marmeladas. Cada mês de novembro, mandava me buscar. Nunca ralhou comigo, e me dava de tudo. Mas eu nunca pedi coisa nenhuma a ele. Dez vezes mais me desse, e não se valia. Eu não gostava dele, nem desgostava. Mais certo era que com ele eu não soubesse me acostumar. Acabei, por razão outra, fugindo do São Gregório, o senhor vai ver. Nunca mais vi meu padrinho. Mas por isso ele não me desejou mal; nem entendo. Decerto, ficou entusiasmado, quando teve notícias de que eu era o jagunço. E me deixou por herdeiro, em folha de testamento: das três fazendas, duas peguei! Só o São Gregório foi que ele testou para uma mulata, com que no fim de sua velhice se ajuntou. Disso não fiz conta. Mesmo o que recebi eu menos merecia. Agora, derradeiramente, destaco: quando velho, ele penou remorso por mim;' eu, velho, a curtir arrependimento por ele. Acho que nós dois éramos mesmo pertencentes.

Depois pouco que voltei do Curralinho, definitivo, grande fato se deu, que ao senhor não escondo. Certa madrugada, os cachorros todos latiram, no São Gregório, alguém estava batendo. Era mês de maio, em má lua, o frio fiava. E, quando tão Moço, eu custava muito para me levantar; não por fraca saúde, mas por preguiça mal corrigida: Assim que saí da cama e fui ver se era de se abrir, meu padrinho Selorico Mendes, com a lamparina na mão, já estava pondo para dentro da sala uns homens, que eram seis, todos de chapéu-grande e trajados de capotes e capas, arrastavam esporas. Ali entraram com uma aragem que arrastavam esporas. Admirei tantas armas. Mas eles não eram caçadores. Ao que farejei: pé de guerra.

Meu padrinho mandou eu ir lá dentro, chamar alguma das mulheres, que coasse café quente. Quando voltei, um

90 joão guimarães rosa.dos homens -Alarico Totõe -estava expondo, explicando. Todos continuavam sem tomar assentos. Alarico Totõe sendo um fazendeiro do Grão-Mogol, conhecido de meu padrinho. Ele, com seu irmão Aluiz Totõe, pessoas finas, gente de bem. Tinham encomendado o auxílio amigo dos jagunços, por uma questão política, logo entendi. Meu padrinho escutava, aprovando com a cabeça. Mas para quem ele sempre estava olhando, com uma admiração toda perturbosa, era para o chefe dos jagunços, o principal. E o senhor sabe quem era esse? Joca Ramiro! Só de ouvir o nome, eu parei, na maior suspensão.

Drede Joca Ramiro estava de braços cruzados, o chapéu dele se desabava muito largo. Dele, até a sombra, que a lamparina arriava na parede, se trespunha diversa, na imponência, pojava volume. E vi que era um homem bonito, caprichado em tudo. Vi que era homem gentil. Dos lados, ombreavam com ele dois jagunções; depois eu soube -que seus segundos. Um, se chamava Ricardão: corpulento e quieto, com um modo simpático de sorriso; compunha o ar de um fazendeiro abastado. O outro -Hermógenes -homem sem anjo-da-guarda. Na hora, não notei de uma vez. Pouco, pouco, fui receando. O Hermógenes: ele, estava de costas, mas umas costas desconformes, a cacunda amontoava, com o chapéu raso em cima, mas chapéu redondo de couro, que se que uma cabaça na cabeça. Aquele homem se arrepanhava de não ter pescoço. As calças dele como que se enrugavam demais da conta, enfolipavam em dobrados. As pernas, muito abertas; mas, quando ele caminhou uns passos, se arrastava -me pareceu -que nem queria levantar os pés do chão. Reproduzo isto, e fico pensando: será que a vida socorre à gente certos avisos? Sempre me lembro dele, me lembro mal, mas atrás de muitas fumaças. Naquela hora, eu estava querendo que ele não virasse a cara. Virou. A sombra do chapéu dava até em quase na boca, enegrecendo.

No terminar, Alarico Totõe pediu que precisavam de um recanto oculto, onde a tropa dos homens passasse o dia que vinha, pois que viajavam de noite, dando surpresa e desmanchando rastro. -"Tem ótimo reconditório..." -meu padrinho consentiu. E mandou que eu fosse guiar aquela gente, até aonde o poço do Cambaubal, num fechado, mato caàpuão. Primeiro, tomou-se café. Assim Joca Ramiro corria pronto os olhos, em tudo ali, sorrindo franco, a cara muito galharda, e pôs as mãos nos bolsos. Ricardão ria grosso. E aquele Hermógenes veio para sair comigo, mais o outro homem -um cabeça-chata alvaço, com muita

grande sertão: veredas 91viveza no olhar; desse gostei, Alaripe se chamava, até hoje se chama. Em que, eles dois a cavalo, eu a pé, viemos até onde estavam esperando os outros, dois passos, no baixo da estrada.

Aí mês de maio, falei, com a estrela-d'alva. O orvalho pripingando, baciadas. E os grilos do chirilim. De repente de certa distância, enchia espaço aquela massa forte, antes de poder ver eu já pressentia. Um estado de cavalos. Os cavaleiros. Nenhum não tinha desapeado. E deviam de ser perto duns cem. Respirei: a gente sorvia o bafejo -o cheiro de crinas e rabos sacudidos, o pêlo deles, de suor velho, semeado das poeiras do sertão. Adonde o movimento esbarrado que se sussurra duma tropa assim -feito de uma porção de barulhinhos pequenos, que nem o dum grande rio, do a-flor. A bem dizer, aquela gente estava toda calada. Mas uma sela range de seu, tine um arreaz, estribo, e estribeira, ou o coscós, quando o animal lambe o freio e mastiga. Couro raspa em couro, os cavalos dão de orelha ou batem com o pé. Daqui, dali, um sopro, um meio-arquejo. E um cavaleiro ou outro tocava manso sua montada, avançando naquele bolo, mudando de lugar, bridava. Eu não sentia os homens, sabia só dos cavalos. Mas os cavalos - mantidos, montados. É diferente. Grandeúdo. E, aos poucos, divulgava os vultos muitos, feito árvores crescidas lado a lado. E os chapéus rebuçados, as pontas dos rifles subindo das costas. Porque eles não falavam -e restavam esperando assim -a gente tinha medo. Ali deviam de estar alguns dos homens mais terríveis sertanejos, em cima dos cavalos teúdos, parados contrapassantes. Soubesse sonhasse eu?

Decerto de guarda, apartado dos mais, se via um cavaleiro, inteiro. Veio vindo para cá, o cavalo dele era escuro; era um alazão de bom pisar.

-"Capixúm, é eu, mais o siô Hermógenes..." -o cabeça-chata falou aviso.

-"A bom, Alaripe !" -o de lá respondeu.

A gente se encostava no frio, escutava o orvalho, o mato cheio de cheiroso, estalinho de estrelas, o deduzir dos grilos e a cavalhada a peso. Dava o raiar, entreluz da aurora, quando o céu branquece. Ao o ar indo ficando cinzento, o formar daqueles cavaleiros, escorrido, se divisava. E o senhor me desculpe, de estar retrasando em tantas minudências. Mas até hoje eu represento em meus olhos aquela hora, tudo tão bom; e, o que é, é saudade.

92 João guimarães rosaDe junto com o Capixúm, se aproximou outro um, também, de soto-chefe, que o Hermógenes tratou de sié-Marques. O Hermógenes tinha voz que não era fanhosa nem rouca, mas assim desgovernada desigual, voz que se safava. Assim -fantasia de dizer -o ser de uma irara, com seu cheiro fedorento. -"Aoh, uê, alguém, irmão?" -aquele sié-Marques perguntou, tratando de minha pessoa. -"De paz, mano velho. Amigo que veio mostrar à gente o arrancho..." -o Hermógenes contestou. Deu ainda um barulho de boca e goela, qual um rosno. Sem mais delongas nenhumas, saí, caminhando ao lado do cavalo do Hermógenes, puxando todos para o Cambaubal. Atrás de nós, eu ouvia os passos postos da grande cavalaria, o regular, esse empurro continuado. Eu não queria virar e espiar, achassem que eu era abelhudo. Mas, agora, eles conversavam, alguns riam, diziam graças. Presumi que estavam muito contentes de ganhar o repouso de horas, pois tinham navegado na sela a noite roda. Um falou mais alto, aquilo era bonito e sem tino: -" Siruiz, cadê a moça virgem?" Largamos a estrada, no capim, molhado meus pés se lavavam. Algum, aquele Siruiz, cantou, palavras diversas, para mim a toada toda estranha:

Urubu é vila alta,
mais idosa do sertão:
padroeira, minha vida -
vim de lá, volto mais não. ..
Vim de lá, volto mais não? ..
Corro os dias nesses verdes,
meu boi mocho baetão:
burití -água azulada,
carnaúba -sal do chão. ..
Remanso de rio largo,
'Viola da solidão:
Quando vou p'ra dar batalha,
convido meu coração...

Vinham quebrando as barras. Dia de maio, com orvalho, eu disse. Lembrança da gente é assim.

Me emprestaram um cavalo, e eu fui, com o Alaripe, esperar a chegada da tropa de burros, adiante, na boca da ponte. Não tardava já vinham aparecendo. Um lote de dez mulas, com os cargueiros. Mas vinham com os cincerros tapados, tafulhados com rama de algodão: afora o geme-

grande sertão: veredas 93-geme das cangalhas, não faziam nenhum rumor. Guiamos os tropeiros também para o Cambaubal. Mas, aí, meu padrinho chegou, com Joca Ramiro, Ricardão, e os Totões. Meu padrinho insistiu, me trouxe outra vez para casa. O dia já estava clareando completo. Meu coração restava cheio de coisas movimentadas.

Não vi mais o acampo deles, as esporas tilintim. Não pude. Padrinho Selorico Mendes mandou que eu fosse no O-Côcho, buscar um homem chamado Rozendo Pio, esse homem -meu padrinho me disse -rastreava. E era para ele vir, debaixo de todos os segredos, tapejar o bando de Joca Ramiro por bons trilhos e atalhos, na Serra das Trinta Voltas, modo de caber em duas noites, sem perigo maior, o que, se não, durasse seis ou sete. Sendo assim, só eu mesmo merecia confiança de ir. Fui, com desgosto. Três léguas, três léguas e meia longe. Mas eu tinha de levar, um cavalo adestro, para o homem. E esse Rozendo Pio era tratantaz e tolo. Demorou muito, com desculpa de arranjos. No caminho, na vinda, ele nem sabia de nada, de jagunços, quase não conversava, não quis dar demonstração. Nem fazia prazer naquilo. Quando chegamos, era o anoitecido, o bando estava pronto para sair. Se separavam em pequenos golpes. Meu padrinho tinha mandado amarrar os cachorros todos da fazenda. Se foram. Achei mesmo " que tudo tinha perdido a graça, o de se ver.

Semanas seguintes, meu padrinho só falou nos jagunços. Dito que Joca Ramiro ,era um chefe cursado: muitos iguais não nascem assim -dono de g1órias! Aquela turma de cabras, tivesse sorte, podia impor caráter ao Governo. Meu padrinho levara aquele dia todo no meio deles. Contava: o cuidado nos arranjos, as coisas todas regradas, aquele dormir de ordem, aquela autoridade enorme no entremeamento. Nem nada faltava. As sacas de farinha, tantas e tantas arrobas de carne de sol, a munição bem zelada, caixote com pães de sabão para cada um lavar a roupa e o corpo. Até tinham um mestre-ferrador, com sua tendinha e os pertences: uma bigorna e as tenazes, fole de mão ferramenta exata; e capanga de alveitar, com vários sortidos flames de sangrar cavalos adoecidos. E as mais coisas meu padrinho descrevia com muito agrado, de que tinha ouvido sincera narração. As lutas dos joca-ramiros, os barulhos, as manhas traçadas para se ganhar em combate, maço de est6rias de toda raça de artes e estratagemas. De ouvir meu padrinho
contar aquilo, se comprazendo sem singeleza,
começava a dar em mim um enjôo. Parecia que

94 João guimarães rosa "ele queria se emprestar a si as façanhas dos jagunços, e que Joca Ramiro estava ali junto de nós, obedecendo mandados, e que a total valentia pertencia a ele, Selorico Mendes. Meu padrinho era antipático. Ficava mais sendo. Eu achava. Num lugar parado, assim, na roça, carece de a gente de vez em quando ir alterando os assuntos.

Não estou caçando desculpa para meus errados, não, o senhor reflita. O que me agradava era recordar aquela cantiga, estúrdia, que reinou para mim no meio da madrugada, ah, sim. Simples digo ao senhor: aquilo molhou minha idéia. Aire, me adoçou tanto, que dei para inventar, de espírito, versos naquela qualidade. Fiz muitos, montão. Eu mesmo por mim não cantava, porque nunca tive entôo de voz, e meus beiços não dão para saber assoviar. Mas reproduzia para as pessoas, e todo o mundo admirava muito recitados repetidos. Agora, tiro sua atenção para um ponto: e ouvindo o senhor concordará com o que, por mesmo eu não saber, não digo. Pois foi -que eu escrevi os outros versos, que eu achava, dos verdadeiros assuntos meus e meus, todos sentidos por mim, de minha saudade e tristezas. Então? Mas esses, que na ocasião prezei, estão goros, remidos, em mim bem morreram, não deram cinza. Não me lembro de nenhum deles, nenhum. O que eu guardo no giro da memória é aquela madrugada dobrada inteira: os cavaleiros no sombrio amontoados, feito bichos e árvores, o refinfim do orvalho, a estrela-d'alva, os grilinhos do campo, o pisar dos cavalos e a canção de Siruiz. Algum significado isso tem?

Meu padrinho Selo rico Mendes me deixava viver na lordeza. No São Gregório, do razoável de tudo eu dispunha, querer querendo. E, de trabalhar seguido, eu nem carecia. Fizesse ou não fizesse, meu padrinho me apreciava; mas não me louvava. Uma coisa ele não tolerava, e era só: que alguém indagasse justo quanto era o dinheiro que ele tinha. Com isso eu nunca somei, não sou especula. Eu vivia com o meu bom corpo. Alguém há de achar algum regime melhor?

Mas, um dia -de tanto querer não pensar no princípio disso, acabei me esquecendo quem - me disseram que não era à-toa que minhas feições copiavam retrato de Selorico Mendes. Que ele tinha sido meu pai! Afianço que, no escutar, em roda de mim o tonto houve - o mundo todo me desproduzia, numa grande desonra. Pareceu até
que, de algum encoberto jeito, eu daquilo jágrande sertão : veredas 95sabia. Assim já tinha ouvido de outros, aos pedacinhos, ditos e indiretas, que eu desouvia. Perguntar a ele, fosse. Ah, eu não podia, não. Perguntar a mais pessoa nenhuma; chegava. Não desesquentei a cabeça. Ajuntei meus trens, minhas armas, selei um cavalo, fugi de lá. Fui até na cozinha, conduzi um naco de carne, dois punhados de farinha no bornal. Achasse algum dinheiro à mão, pegava; disso eu não tinha nenhum escrúpulo. Virei bem fugido. Toquei direto para o Curralim:

Razão por que fiz? Sei ou não sei. De ás, eu pensava claro, acho que de bês não pensei não. Eu queria o ferver. Quase mesmo aquilo me engrossava, desarrazoado, feito o vício dum ruim prazer. Eu fazia minha raiva. Raiva bem não era, isto é: só uma espécie de despique a dentro, o vexame que me inçava não me dava rumo para continuação. Único reger era me empinar e assoprar em esta minha cabeça, aí a confusão, e desordem e altos desesperos. Arremessei o cavalo, galopei demais. Não ia para a casa de Nhô Maroto. Ante antes ia para o seo Assis Wababa - aquela hora eu queria só- gente estranha, muito estrangeira, estrangeira inteira! Só fosse um pouco para ver a Rosa'uarda, essa assim eu amava? Ah, não. Gostasse da Rosa'uarda, mas aí nas delícias dela minha idéia não podendo se firmar - porque aumentava o desamparo de minha vergonha. Ia para a escola de Mestre Lucas! A, lá, perto da casa de Mestre Lucas, morava um senhor chamado Dodó Meirelles, que tinha uma filha chamada Miosótis. Assim, à parva, às tantices, essa mocinha Miosótis também tinha sido minha namorada, agora por muitos momentos eu achava consolo em que ela me visse - que soubesse: eu, com minhas armas matadeiras, tinha dado revolta contra meu padrinho, saíra de casa, aos gritos, danado no animal, pelo cerrado a fora, capaz de capaz! Daí, a Mestre Lucas eu tinha de dar uma explicação. Eu não gostava daquela Mios6tis, ela era uma bobinhã, no São Gregório nunca tinha pensado nela; gostava era de Rosa'uarda. Mas Nhô Maroto havia de logo saber que eu tivesse chegado no Curralim, e meu padrinho ia ter o pronto aviso. Mandava alguém me buscar. Vinha, ele. Não me importava. De repente, eu sabia: o que eu estava querendo era isso mesmo. Ele viesse, me pedisse para voltar, me prometendo tudo, ah, até nos meus pés se ajoelhava. E não viesse? Se demorasse a vir! Ai, o que era que eu ia fazer, caçar meio de vida, aturar remoque sei lá de todos, me repartir no miudinho de cada dia, tão penoso aborrecido. A bis, então, cresceu minha raiva. Tive outras lágrimas

96 João guimarães rosanos bobos olhos. Adramado pensei em minha mãe, com todo querer, e afirmei alto que seria só por conta dela que eu estava procedendo pelo avesso, gritei. Mas aquilo se fingia mal, espécie de minha vergonha esteve sendo maior. Como o cavalo, em rogo de misericórdia, escureceu o pêlo de todo suor. Sosseguei as esporas. Viemos a passo de marcha. Eu tinha medo por causa de minha vida, quando entramos no Curralinho.

Em casa de seo Assis Wababa, me deram trato regozijante. No que jantei, ri, conversei. Só a praga duma surpresa me declararam: a de que a Rosa'uarda agora estava sendo noiva, para se casar com um Salino Cúri, outro turco negociante, nos derradeiros meses para lá vindo. Assumi, em trela, tristeza e alívio -aquele amor não seria mesmo para mim, pelos motivos pessoais. Nublo em que me vi, mas me governei: trancei as pernas, comecei cara de falar pouco, senhor-não, senhor-sim, acautelado sisudo, e indagando dos grandes preços; assim fossem cuidar que essa minha viagem era por tramar importante encargo para o meu padrinho Selorico Mendes. Seo Assis Wababa, oxente se prazia, aquela noite, com o que o Vupes noticiava: que em breves tempos os trilhos do trem-de-ferro se armavam de chegar até lá, o Curralinho então se destinava ser lugar comercial de todo valor. Seo Assis Wababa se engordava concordando, trouxe canjirão de vinho. Me alembro: eu entrei no que imaginei -na ilusãozinha de que para mim também estava tudo assim resolvido, o progresso moderno: e que eu me representava ali rico, estabelecido. Mesmo vi como seria bom, se fosse verdade.

Mas estava lá o Vupes, Alemão Vupes, que eu disse - seo Emílio Wusp, que o senhor diz. Das vezes que viera a passar pelo Curralinho, ele ia era meu conhecido. Tresdobrado homem. Sendo que entendia tudo de manejar com armas, mas viajava sem cano nenhum; dizia: -"Níquites! Desarmado eu completo, eu assim, eles todos mesmo vão muito mais me respeitar, oh, no sertão". Ele me viu afinar mira, uma vez, e me louvou, por eu, de nascença, saber tão bem, na horinha, segurar de não respirar. Mesmo dizia: -"Senhor atira bem, porque atira com o espírito. Sempre o espírito é que acerta..." Soante que dissesse: sempre o espírito é que mata. ..Mas, a bem, agora aquela hora estava lá. o Vupes, assim foi. Porque, num desastre de instante, eu tinha pegado a pensar - o que resolvia minha situação era trabalhar para ele, se viajar vendendo ferramentas por aí, descaroçador de algodão. Nem ponderei,

grande sertão: veredas 97mas disse: - "Seo Vupes, o senhor não quererá me ajustar, em seu serviço?" Minha bestice. "Níquites!" - conforme que o Vupes constante exclamava. Ali nem acabei de falar, e em mim eu já estava arrependido, com toda a velocidade. Idéia nova que imaginei: que, mesmo pessoa amiga e cortês, virando patrão da gente, vira mais rude e reprovante. Mordi boca, já tinha falado. Ainda quis emendar, garantindo que era por gracejo; mas seo Assis Wababa e o Vupes me olhavam a menos, com desconfianças, me senti rebaixado demais. A contra mim tudo contra, o só ensejo das coisas me sisava. Dali logo saí, me despedindo bem. Aonde? Só se fosse ver o Mestre Lucas. Assim vim andando, mediante desespero. Me alembro, vinha andando e agora era que eu pegava a pensar livre e solto na Rosa'uarda, lindas pernas as lindas grossas, ela no vestido, de nanzuque, nunca havia de ser para meu regalo. Dum modo senti, como me recordei, depois, tempos, quando foi arte se cantar uma cantiga:

..Seu pai fosse rico,
tivesse negócio,
eu casava contigo
e o prazer era nosso..."

Isso, mas totalmente; às vezes.

Ao que, digo ao senhor, pergunto: em sua vida é assim? Na minha, agora é que vejo, as coisas importantes, todas, em caso curto de acaso foi que se conseguiram - pelo pulo fino de sem ver se dar - a sorte momenteira, por cabelo por um fio, um clim de clina de cavalo. Ah, e se não fosse, cada acaso, não tivesse sido, qual é então que teria sido o meu destino seguinte? Coisa vã, que não conforma respostas. Às vezes essa idéia me põe susto. Mas, o senhor veja: cheguei em casa do Mestre Lucas, ele me saudou, tão natural. Achei também tudo o natural, eu estava era cansado. E, quando Mestre Lucas me perguntou se eu vinha era de passeata, ou de recado da fazenda, expliquei que não: que eu tinha merecido licença de meu padrinho, para começar vida própria em Curralinho ou adiante, a fito de desenvolver mais estudos e apuramento só de cidade. Dizendo o - que disse, eu mesmo jurava que Mestre Lucas não ia acreditar. Mas acreditou, até melhor. Sabe o senhor por quê? Porque, naquele dia, justo, ele estava remexido no meio de um assunto, que preparava o desejo dele para aí me acreditar. Digo: ele me ouviu, e disse:

-"Riobaldo, pois você chega em feita ocasião!"

98 João guimarães rosa

Aí me explicou: um senhor, no Palhão, na fazenda Nhanva, altas beiras do Jequitaí, para o ensino de todas as matérias estava encomendando um professor. Com urgência, era homem de sua situação, garantia boa paga. Assim queria que Mestre Lucas fosse, que deixasse alguém dando escola no lugar dele, no Curralim, por uns tempos; isso, claro, não podia. Eu queria ir?

"O senhor acha que eu posso?" - perguntei; para principiar qualquer tarefa, quase que eu sozinho nunca tive coragem. -"Ei, pode!" - o Mestre Lucas declarou. Já que estava acondicionando numa bruaca os livros todos - geografia, arimética, cartilha e gramática - e borracha, lápis, régua, tinteiro, tudo o que pudesse ter serventia. Aceitei. Um entusiasmo nosso me botava brioso. Melhor que era para logo, para o seguinte: dois camaradas do dito fazendeiro estavam ali no Curralim, esperando decisão, agora me levavam. Dona Dindinha, mulher de Mestre Lucas, no despedir, me abraçou, me deu umas lágrimas de bondade: -"Tem tanta gente ruim neste mundo, meu filho... E você assim tão moço, tão bonito..."Aí, nem cheguei a ver aquela menina Miosótis. A Rosa'uarda, vi, de longes olhares.

Os dois camaradas, em tanto percebi, eram capangas. Mas sujeitos de seu trato, sem altos-e-baixos nem as maiores asperezas, me deram toda consideração. Viajamos juntos quatro dias, quase trinta léguas, bom tempo beirando o Riachão e enxergando à mão esquerda os vultos da Serra-do-Cabral. Meus companheiros quase que não me informavam, de nada ou nada. Tinham outras ordens. Mas, mesmo antes da gente entrar em terras do Palhão, fui vendo coisas calculosas, dei meio para duvidar. Patrulhas de cavaleiros em armas; toco de conversa de vigiação; e uma tropa de burros cargueiros, mas no meio dos tocadores vinham três soldados. Mais perto, em maiores me vi. Chegar lá declamava surpresa. A Nhanva enxameava de gente homem - pralaprá de feira em praça. E era vistosa fazenda assobradada, com grandes currais e um terreirão. Vi logo o dono.

Ele era imediatamente estúrdio, vestido de brim azul e calçando botas amareladas. Era nervoso, magro, um pouco mais para baixo do que o tamanho mediano, e com braços que pareciam demais de compridos, de tanto que podiam gesticular. Fui indo, ele veio vindo, o grande revólver na cintura; um lenço no pescoço dele esvoaçava. E aquele cabelo bom, despenteado alto, topete arrepiadinho. Apressei o passo, e ele esbarrou, com as mãos nas cadeiras.

Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas - de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não. Vida, e guerra, é o que é: esses tontos movimentos, só o contrário do que assim não seja. Mas, para mim, o que vale é o que está por baixo ou por cima - o que parece longe e está perto, ou o que está perto e parece longe. Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba. O julgamento? Digo: aquilo para mim foi coisa séria de importante. Por isso mesmo é que fiz questão de relatar tudo ao senhor, com tanta despesa de tempo e miúcias de palavra. "Chagas de Cristo! É eles, ei, eguei... Só pode que pode ser é mesmo o João Goanhá, com uns outros..." E instantâneo expediu, para lá, dois próprios, que tocassem ligeiro como sem senões e voltassem trazendo os comparsas amigos. Isso com a certa alegria se ouviu, porque eram novidades acontecendo.

Afora eu. Achado eu estava. A resolução final, que tomei em consciência. O aquilo. Ah, que - agora eu ia! Um tinha de estar por mim: o Pai do Mal, o Tendeiro, o Manfarro. Quem que não existe, o Solto-Eu, o Ele... Agora, por que? Tem alguma ocasião diversa das outras? Declaro ao senhor: hora chegada. Eu ia. Porque eu estava sabendo - se não é que fosse naquela noite, nunca mais eu ia receber coragem de decisão. Senti esse intimado. E tanto mesmo nas idéias pequenas que já me aborrecendo, e por causa de tantos fatos que estavam para suceder, dia contra dia. Eu pensava na vinda de João Goanhá, e que a gente carecia de sair de novamente por ali, por terras e guerras. Pensei naquele seô Habão, que nem num transtorno? Mais não sei. E essas coisas desconvinham em mim, em espécie de necessidade. A não me apartar à-tôa dali - das Veredas-Mortas!

Sombra de sombra, foi entardecendo; fuscava. Ao que eu estivesse destemido, soberbo? Da mão peluda, eu firme estava. Fazia muito tempo que eu não descabia de tão em arrojo. Dou: que nunca, feito naquela hora, e em aquele dia. Somente com a alegria é que a gente realiza bem mesmo até as tristes ações. Retrocedi de todos. De Zé Bebelo, demais: que ele havia de desconfiar, dizer o que era desordens que cabeça de homem não cogita. De Diadorim refugi. Ah, deixa a agüinha das grotas gruguejar sozinha. E, no singular de meu coração, dou dito: o que eu gostava tanto de Diadorim, tinha um escrúpulo - queria que ele permanecesse longe de toda confusão e perigos. Há-de, essa lembrança branda, de minha ação, minha Nossa Senhora ainda marque em meu favor. Deus me tenha!

Adjaz o campo, então eu subi de lá, noitinha - hora em que capivara acorda, sai de seu escondido e vem pastar. Deus é muito contrariado. Deus deixou que eu fosse, em pé, por meu querer, como fui.

Eu caminhei para as Veredas-Mortas. Varei a quissassa; depois, tinha um lance de capoeira. Um caminho cavado. Depois, era o cerrado mato; fui surgindo. Ali esvoaçavam as estopas eram uns caborés. E eu ia estu-

316 joão guimarães rosadando tudo. Lugar meu tinha de ser a concruz dos caminhos. A noite viesse rodeando. Aí, friazinha. E escolher onde ficar. O que tinha de ser melhor debaixo dum pau-cardoso - que na campina é verde e preto fortemente, e de ramos muito voantes, conforme o senhor sabe, como nenhuma outra árvore nomeada. Ainda melhor era a capa-rosa - porque no chão bem debaixo dela é que o Careca dansa, e por isso ali fica um círculo de terra limpa, em que não cresce nem um fio de capim; e que por isso de capa-rosa-do-judeu nome toma. Não havia. A encruzilhada era pobre e qualidades dessas. Cheguei lá, a escuridão deu. Talento de lua escondida. Medo? Bananeira treme de todo lado. Mas eu tirei de dentro de meu tremor as espantosas palavras. Eu fosse um homem novo em folha. Eu não queria escutar meus dentes. Desengasguei outras perguntas. Minha opinião não era de ferro? Eu podia cortar um cipó e me enforcar pelo pescoço, pendurado morrendo daqueles galhos: quem-é-que quem que me impedia?! Eu não ia temer. O que eu estava tendo era o medo que ele estava tendo de mim! Quem é que era o Demo, o Sempre-Sério, o Pai da Mentira? Ele não tinha carnes de comida da terra, não possuía sangue derramável. Viesse, viesse, vinha para me obedecer. Trato? Mas trato de iguais com iguais. Primeiro, eu era que dava a ordem. E ele vinha para supilar o ázimo do espírito da gente? Como podia? Eu era eu - mais mil vezes - que estava ali, querendo, próprio para afrontar relance tão desmarcado. Destes meus olhos esbarrarem num ror de nada.

Esperar, era o poder meu; do que eu vinha em cata. E eu não percebia nada. Isto é, que mesmo com o escuro e as coisas do escuro, tudo devia de parar por lá, com o estado e aspecto. O chirilil dos bichos. Arre, quem copia o riso da coruja, o gritado. Arrepia os cabelos das carnes.

E não conheci arriação, nem cansaço.

Ele tinha que vir, se existisse. Naquela hora, existia. Tinha de vir, demorão ou jájão. Mas, em que formas? Chão de encruzilhada é posse dele, espojeiro de bestas na poeira rolarem. De repente, com um catrapuz de sinal, ou momenteiro com o silêncio das astúcias, ele podia se surgir para mim. Feito o Bode-Preto? O Morcegão? O Xú? E de um lugar - tão longe e perto de mim, das reformas do Inferno - ele já devia de estar me vigiando, o cão que me fareja. Como é possível se estar, desarmado de si, entregue ao que outro queira fazer, no se desmedir de tapados buracos e tomar pessoa? Tudo era para sobrosso, para

grande sertão: veredas 317mais medo; ah, aí é que bate o ponto. E por isso eu não tinha licença de não me ser, não tinha os descansos do ar. A minha idéia não fraquejasse. Nem eu pensava em outras noções. Nem eu queria me lembrar de pertencências, e mesmo, de quase tudo quanto fosse diverso, eu já estava perdido provisório de lembrança; e da primeira razão, por qual era, que eu tinha comparecido ali. E, o que era que eu queria? Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era - ficar sendo!

E foi assim que as horas reviraram. - A meia-noite vai correndo... - eu quis falar. O cote que o frio me apertava por baixo. Tossi, até. - "Estou rouco?" "- Pouco..." - eu mesmo sozinho conversei. Ser forte é parar quieto; permanecer. Decidi o tempo - espiando para cima, para esse céu: nem o setestrêlo, nem as três-marias, - já tinham afundado; mas o cruzeiro ainda rebrilhava a dois palmos, até que descendo. A vulto, quase encostada em mim, uma árvore mal vestida; o surro dos ramos. E qualquer coisa que não vinha. Não vendo estranha coisa de se ver.

Ao que não vinha - a lufa de um vendaval grande, com Ele em trono, contravisto, sentado de estadela bem no centro. O que eu agora queria! Ah, acho que o que era meu, mas que o desconhecido era, duvidável. Eu queria ser mais do que eu. Ah, eu queria, eu podia. Carecia. "Deus ou o demo?" - sofri um velho pensar. Mas, como era que eu queria, de que jeito, que? Feito o arfo de meu ar, feito tudo: que eu então havia de achar melhor morrer duma vez, caso que aquilo agora para mim não fosse constituído. E em troca eu cedia às arras, tudo meu, tudo o mais - alma e palma, e desalma... Deus e o Demo! "Acabar com o Hermógenes! Reduzir aquele homem!..." -; e isso figurei mais por precisar de firmar o espírito em formalidade de alguma razão. Do Hermógenes, mesmo, existido, eu mero me lembrava - feito ele fosse para mim uma criancinha moliçosa e mijona, em seus despropósitos, a formiguinha passeando por diante da gente - entre o pé e o pisado. Eu muxoxava. Espremia, pra ali, amassava. Mas, Ele - o Dado, o Danado - sim: para se entestar comigo - eu mais forte do que o Ele; do que o pavor d'Ele - e lamber o chão e aceitar minhas ordens. Somei sensatez. Cobra antes de picar tem ódio algum? Não sobra momento. Cobra desfecha desferido, dá bote, se deu. A já que eu estava ali, eu queria, eu podia, eu ali ficava. Feito Ele. Nós dois, e tornopío do pé-de-vento - o ró-ró girado mundo a fora, no dobar, funil de final, desses redemoi-318 joão guimarães rosanhos: ..." o Diabo, na rua, no meio do redemunho... Ah, ri; ele não. Ah - eu, eu, eu! "Deus ou o Demo - para o jagunço Riobaldo!" A pé firmado. Eu esperava, eh! De dentro do resumo, e do mundo em maior, aquela crista eu repuxei, toda, aquela firmeza me revestiu: fôlego de fôlego de fôlego - da mais-força, de maior-coragem. A que vem, tirada a mando, de setenta e setentas distâncias do profundo mesmo da gente. Como era que isso se passou? Naquela estação, eu nem sabia maiores havenças; eu, assim, eu espantava qualquer pássaro.

Sapateei, então me assustando de que nem gota de nada sucedia, e a hora em vão passava. Então, ele não queria existir? Existisse. Viesse! Chegasse, para o desenlace desse passo. Digo direi, de verdade: eu estava bêbado de meu. Ah, esta vida, às não-vezes, é terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande. Remordi o ar:

- "Lúcifer! Lúcifer!..." - aí eu bramei, desengulindo.

Não. Nada. O que a noite tem é o vozeio dum ser-só - que principia feito grilos e estalinhos, e o sapo-cachorro, tão arranhão. E que termina num queixume borbulhado tremido, de passarinho ninhante mal-acordado dum totalzinho sono.

- "Lúcifer! Satanaz !..."

Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.

- "Ei, Lúcifer! Satanaz, dos meus Infernos!"

Voz minha se estragasse, em mim tudo era cordas e cobras. E foi aí. Foi. Ele não existe, e não apareceu nem respondeu - que é um falso imaginado. Mas eu supri que ele tinha me ouvido. Me ouviu, a conforme a ciência da noite e o envir de espaços, que medeia. Como que adquirisse minhas palavras todas; fechou o arrocho do assunto. Ao que eu recebi de volta um adejo, um gozo de agarro, daí umas tranqüilidades - de pancada. Lembrei dum rio que viesse adentro a casa de meu pai. Vi as asas, arquei o puxo do poder meu, naquele átimo. Aí podia ser mais? A pêta, eu querer saldar: que isso não é falável. As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!Pois ainda tardei, esbarrado lá, no burro do lugar. Mas como que já estivesse rendido de avesso, de meus íntimos esvaziado. - "E a noite não descamba!..." Assim para-

grande sertão: veredas 319va eu, por reles desânimo de me aluir dali, com efeito: nem firmava em nada minha tenção. As quantas horas? E aquele frio, me reduzindo. Porque a noite tinha de fazer para mim um corpo de mãe - que mais não fala, pronto de parir, ou, quando o que fala, a gente não entende? Despresenciei. Aquilo foi um buracão de tempo.

A mor, bem na descida, avante, branquejavam aqueles grossos de ar, que lubrinam, que corrubiam. Dos marimbús, das Veredas Mortas. Garôa da madrugada. E, a bem dizer por um caminho sem expedição, saí, fui vindo m'embora. Eu tinha tanto friúme, assim mesmo me requeimava forte sede. Desci, de retorno, para a beira dos buritís, aonde o pano d'água. A claridadezinha das estrelas indicava a raso a lisura daquilo. Ali era bebedouro de veados e onças. Curvei, bebi, bebi. E a água até nem não estava de frio geral: não apalpei nela a mornidão que devia-de, nos casos de frio real o tempo estar fazendo. Meu corpo era que sentia um frio, de si, frior de dentro e de fora, no me rigir. Nunca em minha vida eu não tinha sentido a solidão duma friagem assim. E se aquele gelado inteiriço não me largasse mais.

Foi orvalhando. O ermo do lugar ia virando visível, com o esboço no céu, no mermar da d'alva. As barras quebrando. Eu encostei na boca o chão, tinha derreado as forças comuns de meu corpo. Ao perto d'água, piorava aquele desleixo de frio. Abracei com uma árvore, um pé de breu-branco. Anta por ali tinha rebentado galhos, e estrumado. - Posso me esconder de mim?..." Soporado, fiquei permanecendo. O não sei quanto tempo foi que estive. Desentendi os cantos com que piam, os, passarinhos na madrugança. Eu jazi mole no chato, no folhiço, feito se um morcegão caiana me tivesse chupado. Só levantei de lá foi com fome. Ao alembrável, ainda avistei uma meleira de abelha aratim, no baixo do pau-de-vaca, o mel sumoso se escorria como uma mina d'água, pelo chão, no meio das folhas secas e verdes. Aquilo se arruinava, desperdiçado. Senhor, senhor - o senhor não puxa o céu antes da hora! Ao que digo, não digo?

Cheguei no meio dos outros, quando o Jacaré estava terminando de coar café. - "Tu treme friúra, pegou da maleita?" - algum me perguntou. - "Que os carregue!" - eu arrespondi. E mesmo com o sol saindo bom, cacei um cobertor e uma rede. - Arte - o enfim que nada não tinha me acontecido, e eu queria aliviar da recordação, ligeiro, o desatino daquela noite. Assim eu estava desdor-