UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

Imprimir tudo    Voltar

Você está em Leitura por rotas » A Construção do Relógio [P9]

Cálculos elementares - se os compararmos aos empregados na confecção do pêndulo ou à sutileza dos sistemas de som - acusam um ciclo de cento e vinte e cinco dias e três horas para o reencontro dos astros por Heckethorn dispersos em seu pequeno cosmos. Ninguém, a não ser talvez um matemático, e matemático a quem não seja estranha a música de câmara, tem probabilidade de chegar a essa conclusão, sem indicações sobre as leis do mecanismo. A dificuldade de estabelecer-se um ponto inicial para o estudo do ciclo é acentuada por circunstâncias fortuitas. Pode-se estar dormindo ou ausente no momento em que soem, pela ordem, os doze fragmentos da introdução. Resta ainda um pormenor: ainda que estejamos próximos, e despertos, e os escutemos, não teremos ouvido toda a frase musical, desde que Julius, como foi visto, subdividiu-a em treze partes. A penúltima, não incluída nos três sistemas descritos, associou-a a um dispositivo que a faz vibrar de cinco em cinco horas. Com semelhante recurso, salta de cento e vinte e cinco dias e três horas para seiscentos e vinte e cinco e quinze horas o ensejo de ouvir-se, sem falha, a frase de Domenico Scarlatti.

Ora, esta solução, se bem complique um pouco o esquema, também admite previsões exatas. Sabemos, entretanto, que Julius tem motivos para introduzir, na ordem, um preceito de desordem. Que faz então? Fabrica de maneira imperfeita o dispositivo complementar, atingido - e portanto desregulado - sempre que a temperatura sobe, pela dilatação de uma delgada barra de zinco, posta de maneira apropriada. Assim, há momentos em que o penúltimo grupo de notas, chegando a hora de soar, não soa; inversamente, às vezes dá um salto, soando com uma hora ou duas de antecedência. O que decorre desta inexatidão é evidente: tanto pode antecipar a inserção das penúltimas notas na primeira confluência dos doze grupos restantes (aos cento e vinte e cinco dias e três horas), como pode adiar indefinidamente a conjunção perfeita das partes. Com tal imperfeição, o relógio de Julius alcança a perfeição. E como no projeto a que alude o incunábulo impresso em Basiléia, agora uma vida inteira pode decorrer sem que o mecanismo venha a repetir, da primeira à última nota, a introdução da sonata K 462 - denominada, por alguns adeptos do cravo, Sonata de Heckethorn. O valor simbólico que ele pretende incutir à sua obra foi alcançado: estudando-a, um indivíduo capaz de traduzir criptogramas lê quão incerto e entregue a imponderáveis é o destino humano; que a Ordem está sempre exposta a rompimento e que um pequeno fator tanto pode impedir como rematar as harmonias.

Dois ou três anos consagra-os Julius à elaboração dos planos, manejando cálculos que o enervam e afetam a convivência com a mulher, para quem a cegueira já é familiar quando ele afinal os dá por terminados. A fabricação das peças, iniciada em 1933, poucos meses após a subida de Hitler ao poder, dura quatro anos e oito meses. Não falta muito para a conclusão, quando o intimam

© Copyright 2012 - UMA REDE NO AR :: Os Fios Invisíveis da Opressão em Avalovara, de Osman Lins. All rights reserved.

Centro Universitário Ritter dos Reis - Rua Orfanatrófio, 555 - Cep: 90840-440 - Porto Alegre/RS - Brasil | Telefone: +55 (51) 3230.3333