UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

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Você está em Leitura por rotas » A Construção do Relógio [P8]

Todo o zelo que o descendente de Charles William Heckethorn aplica em seu trabalho não bastaria para o elevar à categoria de arquiobjeto, de obra pessoal e merecedora de exame. Teríamos, se se limitasse a isto, um produto artesanal de alta qualidade, amorosamente construído, porém inexpressivo. A novidade do relógio que tanto esforço exige do seu inventor e fabricante, reside no tríplice - ou quádruplo - sistema sonoro, gerado em sua infância entre alguns livros antigos.

Sempre fiel ao cravo, escolhe, para trabalhar em seu projeto, a introdução da Sonata em Fá Menor (K 462), de Scarlatti. (Seria de esperar que preferisse uma passagem de Mozart, a quem não se cansa de admirar). Secciona a introdução em treze partes, numera-as pela ordem e, pondo de lado a penúltima, põe-se a manipular as outras doze. Distribuir esses grupos de notas de tal modo que se percam uns dos outros dentro do relógio, soem separados e só de tempos em tempos voltem a reunir-se - constituindo essa reunião um evento pleno de intenções -, eis o objetivo de Julius. Voltar a ouvir, íntegra, a frase de Scarlatti, será como testemunhar um eclipse. Os eclipses, para ele, afiguram-se o mais fascinante dentre os fenômenos que pedem - como tudo que merece existir e ser fruído - uma conjugação feliz de circunstâncias.

Firmada esta preliminar, desenha e constrói três sistemas sonoros interrelacionados, designando-os pelas três primeiras letras do alfabeto.

O sistema A reúne os grupos de notas 1, 5 e 11, funcionando com os intervalos de quatro, uma e seis horas, ou seja, cumpre-se em onze horas: soa, na primeira vez em que ocorre, o grupo de notas 1; na segunda, os grupos 1 e 5 soam; na terceira, os três. Este processo acumulativo repete-se nos outros dois sistemas.

Outros grupos, quatro - o 2, o 4, o 7 e o 9 -, cabem ao sistema B, cujo ciclo é de treze horas, aos intervalos de duas, duas, três e seis horas.

Maior é o sistema C, que abrange cinco grupos de notas: o 3, o 6, o 8, o 10 e o 13. Também seu ciclo é o mais longo de todos, com os intervalos de quatro, três, cinco, seis e três horas sucessivamente, totalizando portanto vinte e uma.

Em todos estes sistemas há interrupções. Exemplo: antes de soar, completa, a série C, observa-se um silêncio; este silêncio aguarda que ressoem (mas raramente ressoam) o grupo 1 do sistema A e o grupo 2 do sistema B; entre os sons do grupo 3 e os do grupo 6, nova pausa sobrevém e é aí que deverão vibrar, acontecimento também raro, as melodiosas notas dos grupos 4 e 5; o mesmo entre os grupos 6 e 8; entre o 8 e o 10; e entre o 10 e o 13. Funciona o aparelho de som como um jogo de armar e do qual só tivéssemos, de cada vez, certo número de peças, sempre variáveis. Estas, postas no seu lugar, deixam muitos vazios a serem preenchidos; mas quando temos as peças destinadas àqueles claros, então nos faltam outras. O jogo raramente se completa, e, visto por partes, não é compreensível.

Numa réplica intencional da nossa própria existência - incapazes que somos de prever se o instante para o qual nos voltamos será ou não decisivo -, nem todas as horas são marcadas com alguns fragmentos de Scarlatti. Muitas vezes, o ponteiro dos minutos cruza em silêncio o número 12, de modo que nunca sabemos se a próxima hora fará cantarem as engrenagens. Aduzir que não se destina a invenção de Julius, como em tantos relógios, a anunciar as horas, parece-nos ocioso. Vê-se claramente o que pretende, criar um símbolo da ordem astral. Não, por certo, à maneira de Jean-Baptiste Schwilgué, construtor do último relógio de Estrasburgo, com o seu mecanismo de equações solares e lunares, agulhas indicadoras do Sol e da Lua, esfera celeste, mostrador do tempo aparente e anel do tempo civil. Julius quer evocar as conjunções do cosmos, mas poeticamente; não apenas a móbil ordem celeste, mas a harmonia de imponderáveis que permite a um homem encontrar a mulher com quem se funde, que faz nascer uma obra de arte, uma cidade, um reino.

Cremos, se ignoramos seus segredos, escutar a voz do caos ante o relógio desse contemplador. Ouvindo-o dar, às sete ou às dez horas, quatro notas, seguidas de um silêncio e de mais sete ou vinte e cinco notas, ou, então, vendo correrem duas horas sem que nenhum rumor - salvo o do pêndulo - venha da engrenagem, deduzimos que a máquina, alternando silêncio e som, desdenha a ordem, ignora-a e serve à fúria. Não é sempre esta a nossa conclusão ante fenômenos que nos escapam? E pode alguém inculpar-nos se não captamos o sentido de desígnios que, difusos, parecem recusar todo esforço de compreensão? Também isto é visado por Julius: colocar as pessoas, frente aos sistemas de som do seu relógio, na mesma atitude de perplexidade que se sofre perante o Universo.

Ainda uma intenção o orienta, representar o que há de aleatório em nossas existências. Sabemos, todavia, que o relógio de Julius Heckethorn, ou melhor, seus aprestos de som, obedecem a um esquema rigoroso. Sobre este rigor, assenta a idéia de uma ordem no mundo. Como introduzir, então, na obra, o princípio de imprevisto e de aleatório, inerente à vida?

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