UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

Imprimir tudo    Voltar

Você está em Leitura por rotas » A Construção do Relógio [P7]

Sabe perfeitamente Julius Heckethorn que, em outras partes do mundo, e fabricados com instrumentos bem menos precisos, surgem relógios mais engenhosos que o seu. Não o pode equiparar, em invenção e finura, à clepsidra oferecida por Harum-al-Raschid a Carlos Magno e na qual se abrem portas cinzeladas à medida que o nível da água vai descendo; das portas, tombam hastes de prata sobre um tambor de bronze, com um ruído tão sutil e intenso que se ouve à distância; pode-se, além disto, saber quantas horas são passadas pelo número de portas já abertas, existindo ainda, para coroar a maravilha, doze cavaleiros que aparecem na décima segunda hora e desfilam ante o quadrante, fechando as portas, as portas das horas, com o que novo ciclo se inicia. A ninguém, igualmente, causará a máquina de Julius uma admiração fácil e exaltada como a que pede certo relógio de sol: os raios solares, atravessando uma lente, acendem um rastilho: com isto, um tiro de canhão celebra o meio-dia.

Jean de Felains, ao instalar, em fins do século XIV, o relógio encomendado pela municipalidade de Ruão, ira-se ante os louvores, exclamando que a palavra relógio é mais fina e espantosa do que qualquer objeto ou mecanismo. Como este ilustre antepassado, é possível que Julius repudie em seu íntimo, ao fabricar o relógio, toda espécie de admiração. Visto exigir do observador um conhecimento geral das leis que regem a sua invenção, sem o que facilmente parecerá fastidiosa, irregular e destituída de um conhecimento aprofundado do ofício, quem sabe até se não visa, com ela, enervar, desagradar, intrigar, perturbar, inquietar ou provocar julgamentos ásperos?

Semelhantes obras, coisa que a tantos escapa, não surgem facilmente ou com clareza. Os desenhos e os cálculos, na maioria das vezes, distanciam-se do projeto inicial. Mal se reconhece, por isto, no plano final de Julius, seu primeiro esboço, havendo sido abandonadas - sem deixar vestígios - numerosas idéias que, uma vez a obra definida, lhe parecem ingênuas e rebuscadas, como a de um mostrador de 24 horas, em vez de 12, repetindo o modelo Renascentista de Chartres.

Ao pêndulo, cujo desenho faz lembrar um cistro ou um alaúde, consagra extremos cuidados. Nenhuma outra peça de relógio é mais afetada pelas mudanças de temperatura; e qualquer aumento ou retração da haste, apressa ou adianta sua oscilação, variável também segundo as regiões da Terra. Julius, preterindo o pêndulo de aço-níquel de Riefler e o compensador de mercúrio, idealizado por Graham, decide-se pelo de Harrison. Distingue o engenhoso pêndulo de Harrison, a existência, não de uma vareta, mas de várias, com coeficientes diversos de dilatação. Pende o disco - ou lentilha, como o denominam alguns artífices - de varas de aço, ligadas nos extremos por barras de latão; outras varas, uma de aço e duas de zinco, ligam-se apenas à barra superior. Ao elevar-se a temperatura, as varetas de zinco se dilatam muito, não sucedendo o mesmo com as de aço, como se pode ler em qualquer manual de relojoaria avançada posterior a 1728. Com isto, fica praticamente resolvido o problema das mudanças de temperatura. Para a adaptação do mecanismo às várias longitudes da Terra, há, na extremidade inferior da haste, o parafuso regulador. Faltam-lhe defesas contra as alterações de pressão atmosférica.

A lentilha, assim chamada devido ao formato de lente biconvexa e cuja oscilação é de 4 centímetros aproximadamente, tem um diâmetro invulgar: 193 milímetros; e suas bordas, antepondo o mínimo de resistência ao ar, são açuçadas a um limite inconcebível. Depois de roçar 600 ou 800 milhões de vezes, indo e vindo, como um pássaro dócil, no ar desta gaiola envidraçada (também, em seus trânsitos por terras e oceano, nem sempre a resguardam sedas ou flanelas), embota-se a quase imponderável finura que ostentam suas bordas ao saírem das mãos de Julius.

© Copyright 2012 - UMA REDE NO AR :: Os Fios Invisíveis da Opressão em Avalovara, de Osman Lins. All rights reserved.

Centro Universitário Ritter dos Reis - Rua Orfanatrófio, 555 - Cep: 90840-440 - Porto Alegre/RS - Brasil | Telefone: +55 (51) 3230.3333