UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema N - Ö e Abel: o Paraíso [N2]

Transitamos entre nós, vamos de mim a mim eu eu nós eu eu de mim a mim, laço e oito, boca e boca, transitamos e somos, a esfera circunscreve-nos e nós próprios uma esfera, boca e boca (de quem?) coxas braços joelhos bunda orelhas (de quem?) membro garganta bainhas rorantes o prazer formando-se os culhões acesos cabeleiras ais. Relâmpagos arabescos convulsos lento rolar dos trovões estrondos dos trovões carradas de pedrouços entornados sobre lastro de madeira uma explosão atira-os para o ar a sala treme cintilam cristais lustres vidros caixilhos moldura nuvens de chuva açoitadas edifícios pára-raios antenas de TV. Frios rostos sépia atitudes idênticas às das fotografias, gamos com dentes de cachorro cobrem em nossos corpos ovelhas com cabeça de leoas, grupos juvenis chapéus de palha rendas crianças golas marujo, mariposas verdes e vermelhas, cabelos olhos mãos cor sépia silenciosos grupos enchem a sala uns mais visíveis outros apagados todos concretos tangíveis, os cordeiros passeiam, relâmpagos acendem redondos girassóis entre as figuras de sépia girassóis nos seus peitos e ombros e cabeças, afla na sala pássaro feito de pássaros bico rubro diademas e como ataviado em sedas laços flores o pássaro do júbilo da glória do encontro da misericórdia e seu nome é claro um Sol um dia. O ponteiro dos minutos quase vertical XII as rodas denteadas executam o projeto do obscuro fabricante fascinado pelos carrilhões pela confluência dos fatores pela ordem precisa e vulnerável do universo, veemência do abraço cabelos soltos glande em V dentes luminosos (nomes de cidades e cidades com peixes aves insetos quadrúpedes nenhuma sombra humana) vem o prazer como um sopro benigno e temível na sua intensidade, eu sob e sobre, dois e um, sou e somos, "Raah!", o Portador a chuva ondula com o vento toldos agitando-se calçada úmida Avenida Angélica o guarda-chuva negro os prédios mais distantes como apagados ruídos muitas águas detritos na enxurrada as árvores atormentadas. Olavo Hayano o Agente a Chave o Emissário, lama nas batinas rangentes, ramos e flores do tapete, mais pesada a chuva a sala menos sombrosa pneus no asfalto úmido. ó Abel amanhece-me atravessa os cristais desperta as aves vem amanhece-me ah (nós a árvore a praça o Sol escuro platibandas caminhão o céu lavrado mariposas brancas) rangem no ar rude peças ferruginosas "Raah!" A deplorável solidão da Cidade, primeiro passo na revelação - não completa, decerto - da sua natureza, embebe-a de melancolia e mesmo os seus pomares agora se afiguram beluosos. Cândido peso dos escrotos aprazível peso doces calcanhares nos meus rins abre-me a vara pródiga une-me a vara pródiga golpeio o chão com as mãos cerradas sucções e gritos ferem-me as unhas morde-me o ombro (ondas fortes contra as pedras dos Milagres flores vermelhas dos flamboyants no quadro da janela e urros de leões rondando os tetos das casas) teu rosto as flores abrindo teu rosto os dias surgindo as alegrias vindo e lanternas secretas revelando na tua face carnal o luminoso rosto de palavras. Olavo Hayano a entrada do edifício azulejo policromo com cena de caçada os cordeiros berregam amedrontados e giram Hayano o Conducente a esfera o Jardim ainda impenetrável hirtas figuras circunspectas meio devoradas pelas traças seu flébil odor de flores e de luvas guardadas em malas de viagem (pêlos cambiantes dos flancos carne amável airosos peitos coxas venustas fragrância inebriante do púbis o falo insigne as egrégias nádegas de margaridas camélias e açucenas a língua sábia a excelsa fenda dúplice) ah corpo verbal e ressoante e proliferador eis que supondo invadir-te por ti sou invadido libra-se o pássaro de pássaros em círculos maiores e mais altos roçando chapas como de aço as chapas giram devagar voa o pássaro através pesadas nuvens feridas por relâmpagos pouco para as cinco prematuras completas da chuvosa abafada tarde de novembro o guarda-chuva molhado no braço esquerdo do Agente ele ignora o ascensor galga os degraus de mármore lama nas solas. Contemplo a Cidade, radiosa e insulada, sobre o canavial, contemplo as águas imóveis os palácios brilhantes como quartzo, as colunas muito altas e, de súbito, como se tivesse nas mãos um pássaro de plumagem sedosa e multicor, e, soprando-a, descobrisse no pássaro um animal escamoso, minado de piolhos, pústulas e vermes, a Cidade, sem nada perder da pompa visível, revela o seu asco, a sua doença, suas camadas maléficas, até aqui dissimuladas. Volvo para o teto a vulva ergo-a para o zênite escuro como à espera de que finquem em mim do alto e para sempre o tronco da árvore do mundo cruzo os pés nos briosos rins de Abel e alteio o mais que posso a vulva em fogo boca de cão uivando uiva o meu útero eu uivo e abro-me abro-me e urro trovão amor girassóis estendo os braços em T os visitantes abstrusos e seu cheiro de sótão conservo o membro implantado prego batido lâmina e cabo forço e não recuo os beiços do períneo mordem a pele do saco estendo a mão esquerda ao longo do seu braço direito prostrado no tapete cruzam-se os dedos convulsos espécie de aflição o quase o ápice o limite os animais em nós as lianas em nós o pássaro de pássaros as placas de metal ferruginoso em pluma-se um pássaro em nosso corpo e uma grande ave preta uma ave não visível sobre as nuvens baixas voa firme lançando o seu canto estropiado canto de couros grossos cortados com serrote Olavo Hayano nos últimos degraus a arma destravada relâmpago dentes línguas ventres as vulvas latejam cinge-me o anel secreto e no fundo uma língua miúda quente ágil lambe a testa do falo (andando nas pontas dos pés mãos erguidas espáduas para trás o tremido das gorduras) armam-se os martelos do relógio o pêndulo um sistro ou alaúde eu mais e mais o teu corpo mais e mais a voz de grande e rebelde multidão e eis que nossos flancos e espáduas rompem-se abrem-se lascam-se fendem-se e a delícia dos acende os nossos e nós nos e o mundo se e jatos de chamas em torno do e todas as nossas bocas clamam como e quando nos parece haver enfim alcançado o limite supremo canta o relógio e nota após nota flui a melodia fraturada na máquina e conhecemos o que poucos ou ninguém, vivam o que viverem... ó formosura do teu rosto, aguda e afiada, reinando numa riba oblíqua, a magia da Cidade me parece perigosa pérfida infestada de ferrões e não só isto, os martelos do relógio ferem precisos as cordas vamos de patamar em patamar e a Cidade, imóvel, move-se, aproxima-se com lentidão, a armação Julius Heckethorn vai formando a seqüência a harmonia reúne-se o disperso e nós rejubilados a vertigem o vôo galopam saltam e lançam vozes os animais que nos habitam fria e turva a beleza da Cidade, as garras do Só e Soez, e por que este silêncio?, quero arrancar-me à Cidade e não posso, grito um pedido de ajuda, mas quem iria acudir-me, a minha voz é uma voz de condenado, boca contra boca lançamos sem governo gritos e gemidos e palavras cortadas meu amor que maravi eu te e ovelhas e cães se enlaçam em nossas bocas e gazelas e leões revoam mariposas também em nós heliantos flores cem ejaculo os testículos beleza filha da puta a do seu rosto bala na agulha o Portador falha no relógio o penúltimo grupo da seqüência delícia extrema da carne aberto o seu braço direito e nossos dedos cruzados seus pés mimosos nos meus jarretes uma das pernas mais estendida que a outra e a mão livre metendo-me puxando-me enfiando-me falha o penúltimo grupo notas musicais soa o último e o relógio continua a sua busca. Aterrado em face da Cidade e como um homem que não pode mais contar com as próprias forças eu berro, uma expressão humana, mas a voz é um cuincho, grita um porco por mim, grito com boca de suíno, pensando ainda quanto erro em buscar essa Cidade única, ostentosa e ameaçadora e o dia escurece e certo do meu fim perco a noção de tudo. As figuras estáticas fugidas das molduras voltam-se a um só movimento Olavo Hayano ladeado pelos girassóis o guarda-chuva num braço e no outro a pistola a sala obscura o tilintar dos guizos o som da chuva e a voz de que ainda repete "Abel, Abel, eu te amo!" a Gorda vem ao alpendre ergue a cabeça envelhecida olha o tempo o Iólipo um buraco no mundo nós esperamos calados os ternos dedos no meu rosto juntam-se as placas de aço abre-se o pássaro de pássaros toda a minha vida se concentra no ato de buscar sabendo ou não o que pesada como chumbo perde-se nas nuvens a fuliginosa ave de canto ignóbil o Portador na mão direita a morte o fim a conclusão o pássaro dentro de nós agita as asas de seda e canta com bondosa voz humana Olavo Hayano o cabelo negro e branco os dentes grandes e vazia devorada uma banda da cara volta para nós o cano vemos bem o seu gesto e não sabemos o que significa, nada sabemos além do reconhecimento e da beatitude, as figuras antigas e rescendentes a flores e a guardados seus bandós plastrons rendas chapéus continuam imóveis e voltadas para o Portador, ele abre a boca exicial e vários cães ou abonaxis latem de uma vez, canta apaziguador o nosso pássaro mais forte o nosso abraço, novo relâmpago na sala e ouvimos irado cheio de dentes irados o ladrar dos cães e cruzamos um limite e nos integramos no tapete somos tecidos no tapete eu e eu margens de um rio claro murmurante povoado de peixes e de vozes nós e as mariposas nós e girassóis nós e o pássaro benévolo mais e mais distantes latidos dos cachorros vem um silêncio novo e luminoso vem a paz e nada nos atinge, nada, passeamos, ditosos, enlaçados, entre os animais e plantas do Jardim.

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