UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

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Você está em Leitura por rotas » Hermelinda e Hermenilda [T4]

Hermelinda ou Hermenilda move-se entre os viveiros e gaiolas de canários, ao sol. Da rede, olho a outra, a irmã, tirando o bandolim do estojo, lentamente. Gatos passeiam no alpendre.

Através do portão roído de ferrugem, com o pequeno sino de cobre, vejo o sol batendo nas velhas frontarias e nas rótulas, do outro lado da estrada. Um homem, acompanhando um casal de crianças, aponta algo à distância, talvez um papagaio: estamos a duas semanas de agosto, mês de ventos e ressacas. Hermelinda, sentada no banco de vinhático, o velho rosto inclinado, tem a mão no ar, a direita, prestes a ferir seu bandolim. A irmã, numa cadeira de vime, os dedos cruzados entre os joelhos, inclina-se atenta para a irmã e me olha de viés, meio sorrindo. São quatro e meia da tarde e a sombra do chalé já atinge os viveiros, as cristas-de-galo e as dálias sem viço plantadas entre eles. Os pássaros dos viveiros e os canários-do-império nas gaiolas fixadas à parede ou às colunas finas do alpendre, aguardam, os ouvidos ocultos na plumagem, que a palheta de Hermenilda desperte as cordas tensas. No degrau do alpendre: um gato deitado; outro junto ao portão; dorme um terceiro no peitoril da janela, a cauda pendente; à porta da sala de jantar, vindo em nossa direção, outro ainda, uma das patas levantadas. O diálogo previsto já foi pronunciado: "O senhor pode pensar que antes eu tocava muito melhor do que hoje." E a irmã, as mãos entre: os joelhos: "Isso mesmo. Passava do almargem. Hoje, com a idade, os dedos não são aqueles. Mas posso estar mentindo."

Hermenilda rompe a imobilidade e fere com energia insuspeitada as cordas do instrumento. O gato, na porta, pousa a pata no chão, o homem no outro lado da estrada baixa o braço e vai-se com os meninos, saltam os pássaros presos, erguem os bicos e de muitos modos soltam o canto, não só esses que eu vejo ou os que sei existirem, mas ainda outros de que não suspeito e que respondem a Hermenilda, de modo que o chalé aumenta, expande-se, revelado pela voz dos cantores nele ocultos. Pássaros cantam ainda no telhado e no quintal, sob as árvores frutíferas. Qual o parentesco entre a velhice, a incongruência e o caos? Os fios soltos no mundo serão mesmo o reverso do tapete a que se reporta um pensador? Quem pode garantir que existe, oculta aos nossos olhos, a face do desenho? Predominam, vejo bem, a senectude e o avesso. Mesmo assim, um ponto ou um ato existem no qual tudo se ordena e começa. Não? A cantoria dos pássaros volta ao bandolim, volta a Hermelinda, ela bate nas cordas com mais força e ânimo, a irmã bate palmas com suas mãos de cortiça, sem fazer barulho, os gatos, bichos de ouvido fino, continuam deitados ou se movem indiferentes, os cabelos brancos da bandolinista desarranjam-se, distende-se a pele, as rugas mais rasas, ela fecha os olhos e com os molares que restam vai mordendo a língua.

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